O SENHOR TE CHAMA


"Gostaria de dizer àqueles e àquelas que se sentem longe de Deus e da Igreja, aos que têm medo ou aos indiferentes:
O Senhor também te chama para seres parte do seu povo, e o faz com grande respeito e amor!" EG, n.113.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

A NOVA EVANGELIZAÇÃO PARA A TRANSMISSÃO DA FÉ CRISTÃ - LINEAMENTA

SÍNODO DOS BISPOS
XIII ASSEMBLEIA GERAL ORDINÁRIA

A NOVA EVANGELIZAÇÃOPARA A TRANSMISSÃO DA FÉ CRISTÃ

LINEAMENTA

Índice

Prefácio
Introdução

1. A urgência de uma nova evangelização
2. O dever de evangelizar
3. Evangelização e discernimento
4. Evangelizar no mundo de hoje a partir dos seus desafios
Perguntas

Primeiro Capítulo
Tempo de “nova evangelização”
5. “Nova Evangelização”: o significado de uma definição
6. Os cenários da nova evangelização
7. Encarar como cristãos os novos cenários
8. “Nova Evangelização” e demanda de espiritualidade
9. Novas formas de ser Igreja
10. Primeira evangelização, cura pastoral, nova evangelização
Perguntas

Segundo Capítulo
Proclamar o Evangelho de Jesus Cristo
11. Objectivo da transmissão da fé: o encontro e a comunhão com Cristo
12. A Igreja transmite a fé que vive
13. Palavra de Deus e transmissão da fé
14. A pedagogia da fé
15. As Igrejas locais como agentes da transmissão
16. Apresentar razões: o estilo da proclamação
17. Os frutos da transmissão da fé
Perguntas

Terceiro Capítulo
Iniciação à experiência cristã
18. A iniciação cristã, processo de evangelização
19. Primeiro anúncio e necessidade de novas formasde discurso sobre Deus
20. Iniciar à fé, educar para a verdade
21. O objectivo de uma “ecologia da pessoa humana”
22. Evangelizadores e educadores porque testemunhas
Perguntas

Conclusão
23. O Pentecostes, fundamento da “nova evangelização”
24. A “nova evangelização”, visão para a Igreja de hoje e de amanhã
25. A alegria de evangelizar

Prefácio
«Ide, portanto, fazei discípulos de todas as nações, baptizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que vos tenho ordenado» (Mt. 28, 19-20). Com estas palavras, Jesus Cristo, antes de subir aos céus e se sentar à direita de Deus Pai (cf. Ef.1, 20), enviou os seus discípulos para anunciar a Boa Nova ao mundo. Eles representavam um pequeno grupo de testemunhas de Jesus de Nazaré, testemunhas da sua vida terrena, do seu ensinamento, da sua morte e, especialmente, da sua ressurreição (cf. Act. 1, 22). A missão era enorme, superior às suas capacidades. O Senhor Jesus, para os incentivar, promete-lhes a vinda do Paráclito, que o Pai enviará em seu nome (cf. Jo. 14, 26) e os«guiará em toda a verdade» (Jo. 16, 13). Assegura-lhes, além disso, a sua perene presença: «e eis que Eu estou sempre convosco, atéao fim do mundo» (Mt. 28, 20).
Depois do Pentecostes, quando o fogo do amor de Deus pousou sobre os apóstolos (cf. Act.2, 3), unidos em oração «juntamente com algumas mulheres e Maria, mãe de Jesus» (Act. 1, 14),o mandamento do Senhor Jesus começou a realizar-se. O Espírito Santo, que Jesus Cristo concede em abundância (cf. Jo. 3, 34), está na origem da Igreja, que, por sua natureza, é missionária. De facto, logo que receberam a unção do Espírito, o apóstolo São Pedro«levantou-se e falou em voz alta» (Act. 2, 14) anunciando a salvação no nome de Jesus, «que Deus constituiu Senhor e Cristo» (Act. 2, 36). Transformados pelo dom do Espírito, os discípulos espalharam-se por todo o mundo conhecido e difundiram o«evangelho de Jesus Cristo, Filho de Deus in » (Mc. 1, 1). O seu anúncio chegou às regiões do Mediterrâneo, da Europa, da África e da Ásia. Guiados pelo Espírito, dom do Pai e do Filho, os seus sucessores continuaram essa missão, que permanece actual até ao fim dos tempos. Enquanto existe, a Igreja deve anunciar o Evangelho da vinda do Reino de Deus, o ensinamento do seu Mestre e Senhor e, sobretudo, a pessoa de Jesus Cristo.
A palavra«Evangelho», τὸεὐαγγέλιον, é usada desde os tempos da Igreja primitiva. É usada muitas vezes por São Paulo para descrever a pregação do Evangelho, que Deus lhe confiou(cf. 1 Ts. 2, 4) «no meio de tantas lutas» (1 Ts. 2, 2) e toda a nova economia da salvação (cf. 1 Ts. 1, 5ss; Gl. 1, 6-9ss). O termo Evangelho é usado, para além de Marcos (cf.Mc. 1, 14. 15; 8, 35; 10, 29; 13, 10; 14, 9; 16, 15), também pelo evangelista Mateus, muitas vezes na específica combinação de «o Evangelho do Reino» (Mt. 9, 35; 24, 14; cf. 26, 13). São Paulo utiliza, do mesmo modo, o termo evangelizar (εὐαγγελίσασθαι, cf. 2 Cor. 10, 16), que se encontra igualmente nos Actos dos Apóstolos (cf. particularmente Act. 8, 4. 12. 25 35. 40), e cuja utilização conheceu um notável desenvolvimento na história da Igreja.
Nos últimos tempos, com o termo evangelização, pretende-se referir a actividade da Igreja na sua totalidade. A Exortação Apostólica Evangelii nuntiandi, publicada no dia 8 de Dezembro de 1975, inclui, dentro dessa categoria, a pregação, a catequese, a liturgia, a vida sacramental, a piedade popular e o testemunho de vida dos cristãos(cf. EN 17, 21, 48ss).Nesta exortação, o Servo de Deus Papa Paulo VI recolheu os resultados da Terceira Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, realizada de 27 de Setembro a 26 de Outubro de 1974, dedicada ao tema A evangelização no mundo moderno. O Documento conferiu um notável dinamismo à acção evangelizadora da Igreja nas décadas seguintes, acompanhada por uma autêntica promoção humana (cf. EN 29, 38, 70).
Dentro do amplo contexto da evangelização, uma especial atenção foi reservada ao anúncio da Boa Nova às pessoas e aos povos que ainda não conhecem o Evangelho de Jesus Cristo. A eles se dirige a missio ad gentes. Esta tem caracterizado a actividade constante da Igreja, ainda que tenha conhecido momentos especiais em alguns períodos históricos. Basta pensar à epopeia missionária no continente americano ou, mais tarde, nas missões em África, Ásia e Oceânia. Com o Decreto Ad Gentes, o Concílio Vaticano II sublinhou a natureza missionária de toda a Igreja. De acordo com o mandato do seu fundador, Jesus Cristo, os cristãos não somente devem apoiar, com a oração e o sustento material, os missionários, ou seja, as pessoas dedicadas ao anúncio aos não cristãos, mas considerarem-se também chamados a contribuir para a propagação do Reino de Deus no mundo, segundo os costumes e a vocação de cada um. Esta tarefa torna-se particularmente urgente na actual fase de globalização em que, por várias razões, muitas pessoas que não conhecem Jesus Cristo imigram para países de antiga tradição cristã e, de consequência, entram em contacto com os cristãos, testemunhas do Senhor ressuscitado, presente na sua Igreja, de modo especial na sua Palavra e nos sacramentos.
Ao longo dos seus 45 anos, o Sínodo dos Bispos tratou o tema da missio ad gentes em várias Assembleias. Por um lado, teve presente a natureza missionária de toda a Igreja e, por outro, as indicações do Concílio Vaticano II, que no Decreto Ad gentes reiterou a preocupação missionária, qual importante objectivo da própria actividade do Sínodo dos Bispos:«O cuidado de anunciar o Evangelho em todas as partes da terra pertence, antes de mais, ao corpo episcopal; por isso, o Sínodo episcopal ou ‘Conselho permanente de Bispos para toda a Igreja’, entre os assuntos de importância geral, deve atender de modo especial à actividade missionária, que é a principal e a mais sagrada da Igreja» (AG 29).
Nas últimas décadas tem-se falado também da urgência da nova evangelização. Tendo presente a evangelização como horizonte comum da Igreja, bem como a acção de anúncio do Evangelho ad gentes, que requer a formação de comunidades locais, de Igrejas particulares, nos Países missionários de primeira evangelização, a nova evangelização é, antes de mais, endereçada a quantos se afastaram da Igreja nos Países da antiga cristandade. Tal fenómeno, infelizmente, existe em vários graus, mesmo nos Países onde a Boa Nova foi anunciada nos últimos séculos, mas que ainda não foi suficientemente bem acolhida a ponto de transformar a vida pessoal, familiar e social dos cristãos. As Assembleias especiais do Sínodo dos Bispos, a nível continental, celebrados em preparação do Jubileu do Ano 2000, evidenciaram este facto. Este é um dos grandes desafios para a Igreja universal. Por isso, Sua Santidade Bento XVI, depois de auscultar a opinião dos seus irmãos no episcopado, decidiu convocar a XIII Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos sobre o tema A nova evangelização para a transmissão da fé cristã, que se realizará de 7 a 28 de Outubro de 2012. Retomando a reflexão até agora realizada sobre o argumento, a Assembleia sinodal terá por objectivo analisar a situação actual nas Igrejas particulares, para traçar, em comunhão com o Santo Padre Bento XVI, Bispo de Roma e Pastor Universal da Igreja, novas formas e expressões da Boa Notícia que devem ser transmitidas ao homem contemporâneo com renovado entusiasmo, próprio dos santos, alegres testemunhas do Senhor Jesus Cristo, «Aquele que era, que é e que há de vir» (Ap. 4, 8). É um desafio a retirar, como o escriba que se tornou discípulo do Reino dos céus, coisas novas e coisas antigas do precioso tesouro da Tradição (cf. Mt. 23, 52).
Os Lineamenta que agora apresentamos, elaborado com a ajuda do Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, representam uma etapa importante na preparação do Sínodo. No final de cada capítulo encontram-se algumas perguntas que se destinam a facilitar a discussão a nível da Igreja universal. Na verdade, os Lineamenta são enviados ao Sínodo dos Bispos das Igrejas Orientais Católicas sui iuris, às Conferências Episcopais, aos Dicastérios da Cúria Romana e à União dos Superiores Gerais, organismos com os quais a Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos mantém relações oficiais. Os Lineamenta pretendem promover a reflexão sobre este documento nas respectivas estruturas: dioceses, zonas pastorais, paróquias, congregações, associações, movimentos, etc. As respostas destes organismos deveriam ser resumidos pelos responsáveis das Conferências Episcopais, dos Sínodos dos Bispos, bem como pelos outros organismos mencionados, e enviados à Secretaria do Sínodo dos Bispos até 1 de Novembro de 2011, Solenidade de Todos os Santos. Com o apoio do Conselho Ordinário, tais respostas serão cuidadosamente analisadas e integradas no Instrumentum laboris, que é o documento de trabalho da próxima Assembleia sinodal.
Agradecendo antecipadamente a vossa valiosa colaboração, que representa uma preciosa troca de dons, de preocupações e de solicitude pastoral, confiamos o itinerário da XIII Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos à materna protecção da Bem-Aventurada Virgem Maria, Estrela da Nova Evangelização. A sua intercessão obtenha para a Igreja a graça de se renovar no Espírito Santo para que o nosso tempo possa colocar em marcha, com renovado entusiasmo, o mandamento do Senhor ressuscitado: «Ide por todo o mundo e anunciai o Evangelho a todos os povos» (Mc. 16, 15).
Vaticano, 2 de Fevereiro de 2011, Festa da Apresentação do Senhor
Mons. Nikola EterovićArcebispo titular de CibaleSecretário-Geral

INTRODUÇÃO
«Fui encontrado por aqueles que não me procuravam, manifestei-me àqueles que não perguntavam por mim» (Rm. 10, 20)

1. A urgência de uma nova evangelização
Encerrando os trabalhos do Sínodo Especial dos Bispos para o Oriente Médio, o Papa Bento XVI colocou em primeiro plano da agenda da Igreja, claramente, o tema da nova evangelização. «É frequentemente referida a necessidade urgente de uma nova evangelização também para o Médio Oriente. Éum tema muito difuso, sobretudo nos Países de antiga cristianização. A recente criação do Conselho Pontifício para a Promoção da Nova Evangelização responde igualmente a esta necessidade profunda. Por isso, depois de ter consultado o episcopado do mundo e após a consulta do Conselho Ordinário da Secretaria Geral do Sínodo dos Bispos, decidi dedicar a próxima Assembleia Geral Ordinária, em 2012, ao seguinte tema: Nova evangelizatio ad christianam fidem tradendam - A nova evangelização para a transmissão da fé cristã».[1]
Como ele mesmo recorda, a decisão de dedicar esta Assembleia ao tema da nova evangelização deve ser lida dentro de um projecto unificado, que tem como etapas recentes a criação de um dicastério ad hoc [2] e a publicação da exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini,[3] um projecto que se enraíza no compromisso de uma renovada acção evangelizadora que animou o magistério e o ministério apostólico do Papa Paulo VI e do Papa João Paulo II. Desde o Concílio Vaticano II até hoje, a nova evangelização se propôs, sempre com maior lucidez, como o instrumento graças ao qual confrontar-se com os desafios de um mundo em acelerada transformação e como a via para viver, hoje, o dom de ser reunidos pelo Espírito Santo para fazer a experiência do Deus que énosso Pai, testemunhando e anunciando a todos a Boa Nova - o Evangelho - de Jesus Cristo.
2. O dever de evangelizar
A Igreja que anuncia e transmite a fé imita a acção do próprio Deus que se comunica àhumanidade dando-lhe o seu Filho, vive na comunhão trinitária, derrama o Espírito Santo para comunicar com a humanidade. Para que a evangelização seja um eco desta comunicação divina, a Igreja tem de se deixar plasmar pela acção do Espírito Santo e conformar-se com Cristo crucificado, que revela ao mundo o rosto do amor e da comunhão de Deus. Desta maneira redescobre a sua vocação deEcclesia Mater, gerando filhos para o Senhor, transmitindo a fé, ensinando o amor que gera e alimenta os filhos.
No coração do anúncio estáJesus Cristo, professado e testemunhado. Transmitir a fé significa, no essencial, transmitir as Escrituras e, de um modo especial, o Evangelho que permite conhecer a Jesus, o Senhor.
O Papa Paulo VI, relançando a prioridade da evangelização, lembrou a todos os fiéis: «não deixaria de ter a sua utilidade que cada cristão e cada evangelizador aprofundasse na oração este pensamento: os homens poderão salvar-se por outras vias, graças àmisericórdia de Deus, se nós não lhes anunciarmos o Evangelho; mas nós, poder-nos-emos salvar se, por negligência, por medo ou por vergonha, aquilo que São Paulo chamava exactamente “envergonhar-se do Evangelho”, ou por se seguirem ideias falsas, nos omitirmos de o anunciar?».[4] A pergunta, com a qual se conclui a Evangelii nuntiandi, soa aos nossos ouvidos como uma original exegese do texto de São Paulo do qual partimos e que ajuda a colocarmo-nos, imediatamente, no centro do tema que queremos afrontar neste texto: a absoluta centralidade da tarefa da evangelização para a Igreja de hoje. Verificar as nossas vivências, a nossa atitude para com a evangelização, éútil a um nível funcional para melhorar as nossas práticas e as nossas estratégias de anúncio. Essa é, no fundo, a via para nos interrogarmos hoje sobre a qualidade da nossa fé, sobre o nosso modo de sentir e de ser cristãos, discípulos de Jesus Cristo enviados a anunciá-lo ao mundo, de sermos testemunhas cheios do Espírito Santo (cf. Lc. 24, 48s; Act. 1, 8), chamados a fazer, das pessoas de todas as nações, discípulos (cf. Mt. 28, 19s).
A palavra dos discípulos de Emaús (cf. Lc. 24, 13-35) é paradigmática da possibilidade de um anúncio falhado de Cristo, porque incapaz de transmitir vida. Os dois discípulos de Emaús anunciam um morto (cf. Lc. 24, 21-24), narram a sua frustração e a sua perda de esperança. Dizem a possibilidade, para a Igreja de todos os tempos, de um anúncio que não dávida, que mantém encerrado na morte o Cristo anunciado, os anunciadores e os destinatários do anúncio. A pergunta sobre a transmissão da fé, que não éuma acção individualista e solitária, mas um evento comunitário, eclesial, não deve dirigir as respostas no sentido da busca de estratégias eficazes de comunicação, e tão pouco centrar-se analiticamente sobre os destinatários, por exemplo os jovens, mas deve declinar-se como questão que diz respeito ao sujeito encarregado desta operação espiritual. Deve tornar-se uma pergunta da Igreja sobre si mesma. Isto consente de encarar o problema de maneira não extrínseca, mas correcta, dado que põe em causa a Igreja toda no seu ser e no seu viver. E talvez assim se possa atécompreender que o problema da falta de fecundidade da evangelização de hoje, da catequese nos tempos modernos, é um problema eclesiológico, que diz respeito àcapacidade que a Igreja tem de se configurar, ou não, como uma comunidade real, como uma verdadeira fraternidade, como um corpo e não como uma máquina ou uma empresa.
«A Igreja peregrina é, por sua natureza, missionária».[5] Esta afirmação do Concílio Vaticano II resume de forma simples e completa a Tradição da Igreja: a Igreja é missionária porque decorre da missão de Jesus Cristo e da missão do Espírito Santo, segundo o plano de Deus Pai.[6] Além disso, a Igreja é missionária porque assume esta origem como protagonista, fazendo-se arauto e testemunha da Revelação de Deus, reunindo o povo de Deus da dispersão, para que se possa cumprir aquela profecia de Isaías que os Padres da Igreja leram como dirigida a ela: «Amplia o lugar da tua tenda, e estendam-se as cortinas das tuas habitações; não o impeças; alonga as tuas cordas, e fixa bem as tuas estacas, porque transbordarás para a direita e para a esquerda; e a tua descendência possuiráos gentios e faráque sejam habitadas as cidades assoladas» ( Is. 54, 2-3).[7]
As afirmações do apóstolo Paulo, «anunciar o Evangelho não é título de glória para mim; é, antes uma necessidade que se me impõe. Ai de mim, se eu não anunciar o evangelho» (1 Cor. 9, 16) podem, assim, aplicar-se e dirigir à Igreja no seu todo. Como nos recorda o Papa Paulo VI: «Evangelizar constitui, de facto, a graça e a vocação própria da Igreja, a sua mais profunda identidade. Ela existe para evangelizar».[8]
Nesta dupla dinâmica, missionária e evangelizadora, a Igreja não reveste, portanto, apenas o papel de actor, de sujeito da proclamação, mas também aquele reflexivo da escuta e do seguimento. Evangelizadora, a Igreja começa por se evangelizar a si mesma.[9] A Igreja sabe que é o resultado visível desta constante obra de evangelização que o Espírito guia através da história, a fim de que o povo dos redimidos testemunhe a memória viva do Deus de Jesus Cristo. E hoje podemos apoiar ainda com maior convicção esta nossa certeza, porque vimos de uma história que nos relegou páginas extraordinárias de coragem, dedicação, intuição e razão; páginas que nos deixaram muitos ecos e vestígios em textos, orações, modelos e métodos pedagógicos, itinerários espirituais, caminhos de iniciação à fé, obras e instituições educacionais.
3. Evangelização e discernimento
Reconhecer esta dimensão de escuta e de discipulado inscrita na obra de evangelização éimportante para a Igreja por uma segunda razão, além daquela jáacima mencionada, de agradecimento e de contemplação das mirabilia Dei. A Igreja reconhece-se como fruto desta evangelização, assim como agente, porque consciente de que a condução de todo este processo não estáem suas mãos, mas nas mãos de Deus, que a conduz na história através do seu Espírito. Como o deixa bem intuir São Paulo, no texto que serve de porta de acesso a esta introdução (Rm. 10, 20), a Igreja sabe que a direcção da acção de evangelizadora pertence ao Espírito Santo: a Ele se confia para reconhecer os instrumentos, os tempos e os espaços daquele anúncio que échamada a viver. Sabia-o bem São Paulo, que num momento de grandes mutações, como o das origens da Igreja, reconhece, não apenas “teoricamente”, mas “praticamente”, este primado de Deus na organização e na condução da evangelização; e chega a documentar as razões deste primado remontando às Escrituras, de modo particular aos Profetas.
O apóstolo Paulo reconhece este primado da acção do Espírito de uma forma muito intensa e importante para a Igreja nascente: aos crentes parece, de facto, que as estradas a percorrer sejam outras; os primeiros cristãos mostram-se incertos diante de algumas opções fundamentais a tomar. O processo de evangelização transforma-se num processo de discernimento; o anúncio exige que antes exista um momento de escuta, de compreensão, de interpretação.
A nossa época assemelha-se muito à situação vivida por São Paulo: também nós nos encontramos, como cristãos, imersos num período de fortes mudanças históricas e culturais, como veremos mais adiante. Também para nós, o acto de evangelização exige uma análoga, simétrica e simultânea acção de discernimento. O Concílio Vaticano II, mais de quarenta anos atrás, tinha afirmado já: «A humanidade vive um período novo da sua história, caracterizada por profundas mudanças e rápidas transformações que progressivamente se estendem a todo o universo».[10] Estas mudanças, de que nos fala o Concílio, multiplicaram-se no período sucessivo à sua celebração e, ao contrário daqueles anos, induzem não só à esperança, suscitam não apenas as expectativas utópicas, mas geram também medo e semeiam cepticismo. A primeira década deste novo século/milénio foi teatro de transformações que marcaram indelevelmente, e em mais de um caso em modo dramático, a história da humanidade.
Vivemos um momento histórico cheio de mudanças e de tensões, de perda de equilíbrios e de pontos de referência. Esta época força-nos a viver frequentemente encurralados no presente e na precariedade, sendo cada vez mais difícil a escuta e a transmissão da memória humana e a partilha dos valores sobre os quais construir o futuro das novas gerações. Neste contexto, a presença dos cristãos, o trabalho das suas instituições, é percebido de modo menos natural e com maior suspeita; nas últimas décadas, multiplicaram-se as interrogações críticas que confrontam a Igreja e os cristãos, tal como a Deus que proclamamos. A tarefa da evangelização encontra-se, assim, diante de novos desafios, que põem em causa práticas consolidadas, enfraquecem percursos habituais e jápadronizados; numa palavra, obrigam a Igreja a questionar-se de modo novo sobre o sentido das suas acções de anúncio e de transmissão da fé. A Igreja não chega a este desafio, contudo, sem preparação: com isso se debateram já as Assembleias do Sínodo dos Bispos dedicadas especificamente ao tema do anúncio e da transmissão da fé, como testemunham as exortações apostólicas conclusivas Evangelii nuntiandi e Catechesi Tradendae. A Igreja viveu nestes dois eventos um momento significativo de revisão e de revitalização do seu mandato de evangelização.
4. Evangelizar no mundo de hoje a partir dos seus desafios
O texto de São Paulo que nos orienta nesta introdução ajuda-nos a compreender o significado e as razões da próxima Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, para a qual nos estamos preparando. Num tempo assim tão prolongado e tão diferenciado de mudanças e transformações ébom que a Igreja estabeleça espaços e ocasiões para a escuta e para o diálogo recíproco, para que se mantenha a um nível elevado de qualidade o exercício daquele discernimento que nos é pedido pela acção de evangelização que, como Igreja, somos chamados a viver. A próxima Assembleia Geral Ordinária pretende ser um momento privilegiado, um marco importante neste caminho de discernimento. Das Assembleias sobre a evangelização e sobre a catequese o contexto sócio cultural foi medido com mudanças significativas e imprevistas, cujos efeitos - como na crise económica e financeira - são ainda bem visíveis e activos nas nossas respectivas realidades locais. A própria Igreja tem sido directamente afectada por essas mudanças, forçada a lidar com perguntas, com a compreensão dos fenómenos, com as práticas que se devem corrigir, com os caminhos e realidades aos quais comunicar de modo novo a esperança do Evangelho. Tal contexto move-nos naturalmente para a próxima Assembleia sinodal. Da escuta e do confronto recíproco sairemos todos mais enriquecidos e prontos para identificar os caminhos que Deus, através de Seu Espírito, está construindo para se manifestar e fazer-se encontrar pelos homens, segundo a imagem do profeta Isaías (cf. Is. 40, 3; 57, 14; 62, 10).
Um discernimento exige a identificação dos objectos e dos temas sobre os quais fazer convergir a nossa atenção e a partir dos quais acender a escuta e o diálogo recíproco. Destinado a apoiar a acção de evangelização e das mudanças que estão ocorrendo, o nosso exercício de discernimento échamado a colocar no centro da nossa escuta os capítulos essenciais desta prática da Igreja: o nascimento, a propagação e o progressivo afirmar-se de uma “nova evangelização” dentro das nossas Igrejas; as modalidades com as quais a Igreja faz sua e vive hoje a tarefa de transmitir a fé; o rosto e a declinação concreta que assumem no nosso presente os instrumentos dos quais a Igreja dispõe para construir a fé (iniciação cristã, educação), e os desafios com os quais são chamados a confrontar-se. Estes capítulos são a marca do presente texto. O seu objectivo édar início à escuta e ao diálogo, para ampliar os limites do discernimento que existe jána nossa Igreja, e dar-lhe, assim, uma ênfase e um eco ainda mais católico e universal.
Perguntas
O discernimento de que estamos a falar é sempre, por natureza, histórico e determinado: parte de um facto concreto, estrutura-se como reacção a um evento determinado. Apesar de compartilharem de modo geral o mesmo espaço cultural, as nossas Igrejas locais viveram, nas últimas décadas, etapas e episódios neste processo de discernimento que são únicas, típicas do seu contexto e da sua história.
1. Qual desses episódios éútil para ser comunicado às outras Igrejas locais?
2. Quais, dentre estes exercícios de discernimento histórico, seria útil partilhar no espaço interno à catolicidade da Igreja, para que da escuta mútua destes acontecimentos a Igreja universal possa reconhecer as estradas que o Espírito Santo lhe indica para a obra de evangelização?
3. O tema da “nova evangelização” conheceu jáuma difusão capilar nas nossas Igrejas locais. Como tem sido assumida e vivida? A que processos de interpretação deu origem?
4. Que acções pastorais têm beneficiado de um modo especial com a assunção do tema da “nova evangelização”? Que acções conheceram uma mudança e quais as que conheceram um incremento significativo? Pelo contrário, quais as acções que desenvolveram formas de resistência e quais as que se distanciaram do assunto?
PRIMEIRO CAPÍTULO
Tempo de “nova evangelização”
«Como acreditarão naquele de quem não ouviram falar? E como ouvirão, se não há quem o anuncie?» (Rm. 10, 14)
5. “Nova Evangelização”: o significado de uma definição
Embora esteja certamente generalizada e suficientemente assimilada, o termo “nova evangelização” continua a ser recente no universo da reflexão eclesial e pastoral, e por isso com um significado nem sempre claro e consensual. Introduzido pelo Papa João Paulo II, durante a sua visita apostólica à Polónia,[11] o termo “nova evangelização” – inicialmente usado sem qualquer ênfase e quase não deixando pressagiar o papel que depois assumiria – foi por ele retomado posteriormente e relançado, sobretudo, no seu Magistério dirigido às Igrejas da América Latina. A este termo o Papa João Paulo II recorre para fazer dele uma rampa de lançamento; apresenta-o como um meio de comunicação de forças com vista a um novo ardor missionário e evangelizador. Aos Bispos da América Latina diz-lhes: «A comemoração do meio milénio de evangelização alcançaráo seu significado pleno se for um compromisso vosso como bispos, juntamente com o vosso Presbitério e com os vossos fieis; compromisso não certamente de reevangelização mas de uma nova evangelização. Nova em seu ardor, em seus métodos, em suas expressões».[12]Não se trata de fazer de novo qualquer coisa que foi mal feita ou que não funcionou, como se a nova acção fosse um implícito juízo sobre o falhanço da primeira. A nova evangelização não é uma duplicação da primeira, não é uma simples repetição, mas é a coragem de ousar novos caminhos, para atender às mudanças de condições dentro do qual a Igreja échamada a viver hoje o anúncio do Evangelho. O continente latino-americano era chamado naquela época a confrontar-se com novos desafios (a propagação da ideologia comunista, o aparecimento das seitas); a nova evangelização éa acção sucessiva ao processo de discernimento com a qual a Igreja na América Latina échamada a ler e a avaliar a situação na qual se encontra.
Nesta acepção, o termo éretomado e relançado no Magistério do Papa João Paulo II, dirigido à Igreja universal. «A Igreja deve hoje enfrentar outros desafios, lançando-se para novas fronteiras, quer na primeira missão ad gentes, quer na nova evangelização dos povos que járeceberam o anúncio de Cristo. A todos os cristãos, às Igrejas particulares e à Igreja universal, pede-se a mesma coragem que moveu os missionários do passado, a mesma disponibilidade para escutar a voz do Espírito»:[13] a nova evangelização é, antes de mais, uma acção espiritual, a capacidade de assumir, no presente, a coragem e a força dos primeiros cristãos, dos primeiros missionários. É, portanto, uma acção que requer, em primeiro lugar, um processo de discernimento acerca do estado de saúde do cristianismo, o reconhecimento das medidas tomadas e das dificuldades encontradas. O Papa João Paulo II precisarámais adiante: «A Igreja deve dar hoje um grande passo em frente na sua evangelização, deve entrar numa nova etapa histórica do seu dinamismo missionário. Num mundo que, com o encurtar das distâncias, se torna sempre mais pequeno, as comunidades eclesiais devem ligar-se entre si, trocar energias e meios, empenhar-se juntas na missão, única e comum, de anunciar e de viver o Evangelho. “As Igrejas ditas mais jovens — disseram os Padres sinodais — têm necessidade da força das mais antigas, enquanto que estas precisam do testemunho e do entusiasmo das mais jovens, de forma que cada Igreja beneficie das riquezas das outras Igrejas”».[14]
Estamos agora em condições de compreender o funcionamento dinâmico confiado ao conceito de “nova evangelização”: recorre-se a ele para indicar o esforço de renovação que a Igreja échamada a fazer para estar àaltura dos desafios que o contexto social e cultural de hoje coloca à fé cristã, ao seu anúncio e ao seu testemunho, como consequência das profundas mudanças em curso. A Igreja responde a estes desafios não cruzando os braços, não fechando-se em si mesma, mas através do lançamento de uma operação de revitalização do seu próprio corpo, tendo colocado no centro a figura de Jesus Cristo, o encontro com Ele, que doa o Espírito Santo e as energias para um anúncio e uma proclamação do Evangelho através de novos caminhos, capazes de falar às culturas de hoje.
Assim configurado, o conceito de “nova evangelização” éassumido e relançado nas Assembleias do Sínodo por Continentes, celebrados em preparação do Jubileu do Ano 2000, fixando-se já como um conceito assumido nas reflexões pastorais e eclesiais das Igrejas locais. “Nova Evangelização” é sinónimo de renascimento espiritual da vida de fé das igrejas locais, início de percursos de discernimento das mudanças que afectam a vida cristã nos diferentes contextos culturais e sociais, releitura da memória da fé, assunção de novas responsabilidades e novas energias em vista de uma proclamação alegre e contagiante do Evangelho de Jesus Cristo[15]. Suficientemente sintéticas e exemplares são as palavras do Papa João Paulo II à Igreja na Europa: «resultou a urgência e a necessidade da “nova evangelização”, cientes de que a Europa, hoje, não deve simplesmente fazer apelo à sua precedente herança cristã: é preciso, de facto, que seja posta em condições de decidir novamente do seu futuro no encontro com a pessoa e a mensagem de Jesus Cristo»[16].
Apesar dessa popularidade e notoriedade, o termo não consegue ainda, no entanto, fazer-se aceitar de modo pleno e total no debate, tanto dentro da Igreja como dentro da cultura. Algumas reservas perduram acerca dela ainda, como se com este termo se quisesse desenvolver um processo de rejeição e de remoção de algumas páginas do passado recente da vida das Igrejas locais. Háquem duvide que a “nova evangelização” cubra ou esconda a intenção de novas acções de proselitismo por parte da Igreja, especialmente em relação a outras confissões cristãs.[17]Tende-se a pensar que com esta definição se opere uma mudança na atitude da Igreja para com aqueles que não crêem, transformados em objecto de persuasão e não mais considerados como interlocutores de um diálogo em que se partilha uma mesma humanidade e se busca a verdade da nossa existência. A esta última preocupação entendeu dar atenção, e também uma resposta, durante a sua visita apostólica à República Checa, o Papa Bento XVI: «Isto traz-me àmente a palavra que Jesus cita do profeta Isaías, isto é, que o templo deveria ser uma casa de oração para todos os povos (cf. Is. 56, 7; Mc. 11, 17). Estava Ele a pensar no chamado pátio dos gentios, que acabava de esvaziar de negócios externos a fim de o espaço ficar livre para os gentios que ali queriam rezar ao único Deus, embora sem poder participar no mistério, para cujo serviço estava reservado o interior do templo. Espaço de oração para todos os povos: ao dizê-lo, Jesus pensava em pessoas que conhecem Deus, por assim dizer, só de longe; que estão insatisfeitas com os seus deuses, ritos e mitos; que desejam o Puro e o Grande, mesmo se Deus permanece para eles o “Deus desconhecido” (cf. Act. 17, 23). Também elas deviam poder rezar ao Deus desconhecido e assim estar em relação com o Deus verdadeiro, embora no meio de escuridão de vário gênero. Penso que a Igreja deveria também hoje abrir uma espécie de “pátio dos gentios”, onde os homens pudessem de qualquer modo agarrar-se a Deus, sem O conhecer e antes de terem encontrado o acesso ao seu mistério, a cujo serviço está a vida interna da Igreja»[18].
Nós, crentes, devemos levar a sério atémesmo as pessoas que se consideram agnósticos ou ateus. Esses talvez se assustem quando se fala de nova evangelização, como se tivessem de se tornar objecto de missão. Mas a questão de Deus, todavia, continua presente também para eles. A busca de Deus foi a razão fundamental pela qual nasceu o monaquismo ocidental e, com ele, a cultura ocidental. O primeiro passo da evangelização consiste no procurar manter viva essa procura. É preciso manter o diálogo não sócom as religiões, mas também com quem considera a religião como algo de estranho.
A imagem do “pátio dos gentios” chega-nos como um ulterior elemento da reflexão sobre a “nova evangelização”, que revela a audácia dos cristãos em nunca desistir de procurar positivamente todas as vias para estabelecer formas de diálogo que cheguem aos anseios mais profundos dos homens e à sua sede de Deus. Tal audácia permite colocar nesses contextos a questão de Deus, partilhando a própria experiência de procura e contando o encontro com o Evangelho de Jesus Cristo como um dom. Este tipo de capacidade, tal atitude, exige um primeiro momento de exame pessoal e de purificação, para reconhecer os sinais de medo, de fadiga, de confusão, de fechamento em si mesmo que a cultura, na qual vivemos, pôde gerar em nós. Num segundo momento, será urgente a iniciativa, o colocar-se em marcha, com o apoio do Espírito Santo, para aquela experiência de Deus vivida como Pai que o encontro com Cristo nos permite de anunciar a todos os homens. Estes momentos não constituem etapas que se sucedem umas às outras, mas impulsos espirituais que acontecem sem solução de continuidade dentro da vida cristã. O apóstolo Paulo dá conta deles, quando descreve a experiência da fé como uma libertação «do poder das trevas» e um ingresso «no reino do Filho do Seu amor, através do qual temos a tlineredenção e o perdão dos pecados» (Cl. 1, 13-14, cf. também Rm. 12, 1-2). Da mesma forma, esta ousadia não éalgo de completamente novo ou de completamente inédito para o cristianismo, havendo já na literatura patrística marcas dessa atitude[19].
6. Os cenários da nova evangelização
A nova evangelização é, portanto, uma atitude, um estilo audaz. É a capacidade do cristianismo de saber ler e decifrar os novos cenários que nestas últimas décadas se têm vindo a criar na história da humanidade, para os habitar e transformar em lugares de testemunho e de anúncio do Evangelho. Estes cenários foram identificados, analisados e descritos diversas vezes[20]; são cenários sociais, culturais, económicos, políticos, religiosos.
Em primeiro lugar, antes de mais, deve ser indicado o cenário de fundo cultural. Vivemos numa época de profunda secularização, que perdeu a capacidade de ouvir e compreender as palavras do Evangelho como uma mensagem viva e revigorante. A secularização, enraizada de modo particular no mundo ocidental, fruto de episódios e de movimentos e pensamentos sociais que lhe marcaram profundamente a história e a identidade, apresenta-se, hoje, nas nossas culturas, através da imagem positiva da libertação, da possibilidade de imaginar a vida do mundo e da humanidade sem fazer referência à transcendência. Ultimamente não se apresenta tanto como forma pública de discurso directo e forte contra Deus, contra a religião e contra o cristianismo, embora recentemente, em alguns casos, os tons anti cristãos, anti religiosos e anti clericais se tenham feito sentir. A secularização assumiu, sobretudo, um certo tom resignado que permitiu a essa forma cultural de invadir o quotidiano das pessoas e desenvolver uma mentalidade na qual Deus foi posto de parte, total ou parcialmente, da existência e da consciência humana. Esta sua forma permitiu-lhe de entrar na vida dos cristãos e das comunidades eclesiais, tornando-se, assim, não já somente uma ameaça externa para os crentes, mas um terreno de confrontação permanente[21]. São expressões da chamada cultura do relativismo. Além disso, em causa estão sérias implicações antropológicas que colocam em questão a própria experiência humana básica, como a relação homem-mulher, o sentido da procriação e da morte.
As características de uma forma secularizada de entender a vida influenciam o comportamento diário de muitos cristãos, que se mostram frequentemente influenciados, mesmo até condicionados, pela cultura da imagem com os seus modelos e impulsos contraditórios. A mentalidade hedonista e consumista predominante provoca neles uma tendência para a superficialidade e egocentrismo que não éfácil de combater. A “morte de Deus”, proclamada por muitos intelectuais no passado, estádando lugar a um culto estéril do indivíduo. O risco de perder os elementos fundamentais da gramática da fé é uma realidade, com a consequência de cair na atrofia espiritual e num vazio do coração, ou, pelo contrário, em sucedâneos de pertença religiosa e de vago espiritualismo. Num cenário como este, a nova evangelização apresenta-se como um estímulo, do qual as comunidade cansadas e fatigadas necessitam, para redescobrir a alegria da experiência cristã, para reencontrar «o amor de um tempo» que se perdeu (Ap. 2,4 ), para confirmar a natureza da liberdade na busca da Verdade.
Por outro lado, em outras regiões do mundo, assiste-se a um promissor renascimento religioso. Muitos aspectos positivos da redescoberta de Deus e do sagrado em várias religiões são obscurecidos pelo fenómeno do fundamentalismo, que muitas vezes manipula a religião para justificar a violência e atémesmo o terrorismo. Trata-se de um grave abuso. «Não se pode usar a violência em nome de Deus»[22]. Além disso, a proliferação das seitas éum desafio permanente.
Junto a este primeiro cenário cultural, podemos indicar um segundo, mais social: o grande fenómeno migratório que força cada vez mais as pessoas a deixarem o seu país de origem e a viverem em ambientes urbanizados, modificando a geografia étnica das nossas cidades, das nossas nações e dos nossos continentes. Deste facto deriva um encontro e a mistura das culturas que as nossas sociedades não conheciam desde há muitos séculos. Estão a acontecer formas de contaminação e de erosão das referências fundamentais da vida, dos valores pelos quais se dava a vida, das próprias ligações através dos quais os indivíduos estruturam as suas identidades e acedem ao sentido da vida. O resultado cultural destes processos éum clima de extrema fluidez e “liquidez” em que hácada vez menos espaço para as grandes tradições, inclusivamente aquelas religiosas, e a sua missão de estruturar de modo objectivo o sentido da história e da identidade dos sujeitos. A este cenário social estáligado aquele fenómeno que se conhece pelo termo de globalização, realidade que não é fácil de decifrar, e que requer, por parte dos cristãos, um forte trabalho de discernimento. Pode ser vista como um fenómeno negativo, se desta realidade prevalecer uma interpretação determinista, vinculada apenas à esfera económica e produtiva; pode, porém, ser vista como um momento de crescimento, em que a humanidade aprende a desenvolver novas formas de solidariedade e novas formas de partilhar o desenvolvimento de todos ao bem[23]. A nova evangelização, num cenário como este, permite-nos aprender que a missão não émais um movimento norte-sul ou este-oeste, porque é preciso desvincular-se das delimitações geográficas. Hoje a missão diz respeito a todos os cinco continentes. É preciso aprender a conhecer os sectores e os ambientes que são estranhos à fé, porque nunca a encontraram e não apenas porque se afastaram dela. Desvincular-se das delimitações quer dizer ter a energia para levantar a questão de Deus em todos aqueles processos de encontro, de mistura, de reconstrução dos tecidos sociais que estão em marcha em cada um dos nossos contextos locais.
Esta profunda mistura das culturas éo pano de fundo sobre o qual opera um terceiro cenário, que vai marcando, de um modo cada vez mais determinante, a vida das pessoas e a consciência colectiva. Trata-se do desafio dos meios de comunicação social, que hoje oferecem enormes possibilidades e representam um dos grandes desafios para a Igreja. Inicialmente característico apenas do mundo industrializado, o cenário que apresentamos é capaz de afectar hoje uma grande parte dos países em vias de desenvolvimento. Não hálugar no mundo de hoje que não possa ser alcançado e, por isso, não estar sujeito à influência da cultura mediática e digital, que progressivamente se estrutura como o “lugar” da vida pública e da experiência social. A difusão desta cultura traz consigo indubitáveis vantagens: maior acesso à informação, maior possibilidade de conhecimento, de partilha, de formas novas de solidariedade, de capacidade de construir uma cultura sempre mais global, tornando os valores e os melhores desenvolvimentos do pensamento e da expressão humana património de todos. Esse potencial, no entanto, não pode esconder os riscos que uma excessiva difusão de uma cultura deste tipo está já gerando. Manifesta-se uma profunda concentração egocêntrica sobre si e apenas sobre as suas necessidades individuais. Afirma-se uma exaltação da dimensão emotiva na estruturação das relações e dos laços sociais. Assiste-se à perda do valor objectivo da experiência da reflexão e do pensamento, reduzida, em muitos casos, a puro lugar de confirmação do próprio sentir. Espalha-se uma progressiva alienação da dimensão ética e política da vida, reduzindo a alteridade ao papel funcional de espelho e espectador das minhas acções. O último ponto ao qual podem levar estes riscos éaquilo a que se chamou a cultura do efémero, do imediato, da aparência, ou seja de uma sociedade incapaz de memória e do futuro. Neste contexto, a nova evangelização, pede aos cristãos a coragem de habitar esses “novos areópagos”, encontrando os instrumentos e os percursos para tornar audível também nesses lugares ultramodernos o património educativo e de sabedoria preservada pela tradição cristã[24].
Um quarto cenário, que marca com as suas mudanças a actividade evangelizadora da Igreja, éo cenário económico. Inúmeras vezes o Magistério dos Sumos Pontífices denunciou os crescentes desequilíbrios entre o Norte e o Sul do mundo, no acesso e na distribuição dos recursos, bem como nos danos causados. A continuação da crise económica em que nos encontramos assinala o problema do uso das forças materiais, que sente dificuldades em encontrar as regras de um mercado mundial capaz de tutelar uma convivência mais justa[25]. Apesar de a comunicação social reservar sempre menor atenção a uma leitura destes problemas a partir da voz dos pobres, das Igrejas espera-se ainda muito em termos de sensibilização e de acções concretas.
Um quinto cenário éo da investigação científica e tecnológica. Vivemos numa época que ainda não recuperou da estupefacção suscitada pelos constantes alvos que a investigação nestes tempos tem sido capaz de superar. Todos podemos sentir na vida diária os benefícios trazidos por estes progressos. E com frequência nos sentimos dependentes desses benefícios. A ciência e a tecnologia correm, assim, o risco de se tornarem os novos ídolos do presente. Num contexto digital e globalizado como o nosso é fácil que a ciência se torne a nova religião, reenviando para ela as questões da verdade e da procura de sentido, sabendo que receberemos apenas respostas parciais e insuficientes. Encontramo-nos diante do aparecimento de novas formas de gnosticismo, que encaram a técnica como uma forma de sabedoria, na busca de uma organização mágica da vida que funcione como saber e como sentido. Assistimos ao surgimento de novos cultos. Cultos que conferem formas terapêuticas às práticas religiosas que os homens estão dispostos a viver, estruturando-se como religiões da prosperidade e da gratificação instantânea.
Um sexto cenário é, enfim, o da política. Desde o Concílio Vaticano II até hoje as mudanças podem, justamente, ser definidas como epocais. Chegou ao fim, com a crise da ideologia comunista, a divisão do mundo ocidental em dois blocos. Isso favoreceu a liberdade religiosa e a possibilidade de reorganização das Igrejas históricas. O emergir, na cena mundial, de novos actores económicos, políticos e religiosos, como o mundo islâmico, o mundo asiático, criou uma situação inédita e totalmente desconhecida, rica de potencialidades, mas também cheia de perigos e de novas tentações de domínio e de poder. Neste cenário, o compromisso pela paz, o desenvolvimento e a libertação dos povos, a melhoria das formas de governo mundial e nacional, a construção de formas possíveis de escuta, convivência, diálogo e cooperação entre diferentes culturas e religiões, a defesa dos direitos humanos e dos povos, especialmente das minorias, a promoção dos mais fracos, a salvaguarda da criação e o compromisso com o futuro do nosso planeta, são temas e áreas que carecem de ser iluminados pela luz do Evangelho.
7. Encarar como cristãos os novos cenários
Diante destas mudanças énatural que a primeira reacção seja de perplexidade e de medo, confrontados com transformações que interrogam a nossa identidade e a nossa fé até aos fundamentos. É natural assumir aquela atitude de discernimento crítico, várias vezes lembrado pelo Papa Bento XVI, quando nos convida a fazer uma releitura do presente a partir da perspectiva da esperança que o cristianismo oferece como um dom[26]. Aprendendo novamente o que é a esperança, os cristãos poderão ser capazes de operar no contexto dos seus conhecimentos e das suas experiências, dialogando com os outros homens, intuindo o que podem oferecer ao mundo como dom, o que podem partilhar, o que podem assumir para exprimir ainda melhor esta esperança, e, por outro lado, sobre que elementos têm o direito de resistir. Os novos cenários, com os quais somos chamados a confrontarmo-nos, apelam para que se desenvolva uma crítica aos estilos de vida, às estruturas de pensamento e de valor, às linguagens construídas para comunicar. Ao mesmo tempo essa deverá funcionar como uma autocrítica do cristianismo moderno, que deve aprender sempre de novo a questionar-se, a partir das próprias raízes.
Aqui encontra o seu específico e a sua força o instrumento da nova evangelização: é preciso olhar para estas situações, para estes fenómenos, sabendo superar o nível emocional do juízo defensivo e do medo, para aproveitar objectivamente os sinais do novo, juntamente com os desafios e fragilidades. “Nova evangelização” significa, portanto, trabalhar nas nossas Igrejas locais para construir caminhos de leitura dos fenómenos acima indicados que permitam traduzir a esperança do Evangelho em termos práticos. Isto significa que a Igreja se edifica aceitando medir-se com esses desafios, tornando-se cada vez mais a artífice da civilização do amor.
“Nova evangelização” quer dizer, além disso, ter a audácia de levar a questão de Deus para dentro destes problemas, concretizando aquilo que é específico da missão da Igreja e mostrando neste mundo como a perspectiva cristã ilumina de um modo completamente novo os principais problemas da história. A nova evangelização pede-nos para lidar com estes cenários não permanecendo fechados no recinto das nossas comunidades e das nossas instituições mas, a partir de dentro, aceitar o desafio de entrar em tais fenómenos, para lhes levar a palavra e o nosso testemunho. Esta éa forma que a martyria cristã assume hoje no mundo, aceitando o confronto também com aquelas recentes formas de ateísmo agressivo ou de extremo secularismo, cujo objectivo éo eclipse da questão de Deus na vida humana.
Neste contexto, “nova evangelização” significa para a Igreja apoiar convictamente o esforço de ver todos os cristãos unidos no mostrar ao mundo a força profética e transformadora da mensagem evangélica. A justiça, a paz, a convivência entre os povos, a salvaguarda da criação são as palavras que marcaram o caminho ecuménico das últimas décadas. Os cristãos, todos juntos, oferecem-se ao mundo, como lugar onde fazer emergir a questão de Deus na vida das pessoas. Na verdade, estas palavras adquirem o seu sentido mais autêntico apenas àluz e no contexto da palavra de amor que Deus teve para connosco em Seu Filho Jesus Cristo.
8. “Nova Evangelização” e demanda de espiritualidade
Este esforço por trazer a questão de Deus para dentro dos problemas do homem de hoje, intercepta o retorno da necessidade religiosa e a procura da espiritualidade que a partir das novas gerações emerge com renovado vigor. As mudanças de cenário que analisamos até este ponto não podiam não exercer influencia também sobre o modo como os homens deram voz e corpo ao seu sentido religioso. A própria Igreja Católica é afectada por este fenómeno, que oferece recursos e oportunidades de evangelização inesperadas há algumas décadas. Os grandes encontros mundiais da juventude, as peregrinações aos lugares de culto antigos e modernos, a primavera dos movimentos e dos grupos eclesiais são o sinal visível de um sentimento religioso que não se apagou. A “nova evangelização”, neste contexto, exorta a Igreja a saber discernir os sinais do Espírito na acção, dirigindo e educando as suas expressões, em vista de uma fé adulta e consciente «até chegar à medida da plenitude de Cristo» (Ef. 4, 13)[27]. Além dos grupos recentemente nascidos, fruto promissor do Espírito Santo, uma grande tarefa na nova evangelização diz respeito àvida consagrada nas suas antigas e novas formas. Recordemos que nos dois mil anos de cristianismo todos os grandes movimentos de evangelização estiveram ligados a formas de radicalismo evangélico.
Neste contexto, insere-se o encontro e o diálogo com as grandes tradições religiosas, especialmente as orientais, que a Igreja aprendeu a viver nas últimas décadas, e continua a intensificar. Este encontro apresenta-se como uma óptima ocasião para conhecer e comparar a forma e as linguagens da questão religiosa tal como se apresenta nas outras experiências religiosas. Isso permite ao catolicismo de compreender com maior profundidade as formas com as quais a fé cristã escuta e assume a questão religiosa de cada homem.
9. Novas formas de ser Igreja
Estas novas condições da missão fazem-nos supor que o termo “nova evangelização” indica, finalmente, a necessidade de identificar novas expressões de evangelização para ser Igreja dentro dos contextos sociais e culturais actuais assim em mutação. As figuras tradicionais e consolidadas - que convencionalmente são indicados com os termos “países da cristandade” e “terras de missão” - para além da sua clareza conceptual mostram játambém as suas limitações. São demasiado simples e referem-se a um contexto em vias de ser superado, para poderem funcionar como modelos para a construção de comunidades cristãs de hoje. É preciso que a prática cristã guie a reflexão num progressivo trabalho de construção dum novo modelo de ser Igreja, que evite as armadilhas do sectarismo e da “religião civil” e permita, num contexto pós ideológico como o do presente, continuar a manter a forma de uma Igreja missionária. Por outras palavras, a Igreja precisa, na sua variedade de formas, de não perder o rosto de Igreja “doméstica, popular”. Mesmo em contextos de minoria ou de discriminação, a Igreja não pode perder a sua capacidade de estar perto da vida das pessoas, para a partir daí anunciar a mensagem vivificante do Evangelho. Como afirmava o Papa João Paulo II, “nova evangelização” significa refazer o tecido cristão da sociedade humana, refazendo o tecido das próprias comunidades cristãs;[28] ou seja ajudar a Igreja a continuar a estar presente «nas casas dos seus filhos e das suas filhas»[29], para animar as suas vidas e encaminhá-las para o Reino que está para vir.
Neste trabalho de discernimento podem ser de grande ajuda as Igrejas Orientais Católicas e todas as comunidades cristãs que no seu passado recente viveram ou estão a viver a experiência da clandestinidade, da perseguição, da exclusão, de serem vitimas da intolerância de natureza étnica, ideológica e religiosa. O seu testemunho de fé, a sua tenacidade, a sua capacidade de resistência, a força da sua esperança, a intuição de algumas das suas práticas pastorais são uma dádiva a ser partilhada aquelas comunidades cristãs que, embora tenham um passado glorioso às suas costas, vivem um presente feito de fadiga e dispersão. Para as Igrejas pouco habituadas a viver a sua fé numa situação de minoria é certamente um dom poder ouvir experiências que lhes incutam aquela confiança indispensável para se lançarem em frente, exigida pela nova evangelização.
É tempo de nova evangelização também para o Ocidente, onde muitos que receberam o baptismo vivem completamente fora da vida cristã e sempre mais pessoas conservam ainda certamente alguma coisa daquela ligação à fé mas conhecem jápouco e mal os seus fundamentos. Frequentes vezes a apresentação da fé cristã é distorcida por caricaturas e estereótipos que a cultura difunde, numa atitude de indiferença, quando não de clara oposição. É hora de nova evangelização para aquele ocidente no qual «países inteiros e nações, onde a religião e a vida cristã foram em tempos tão prósperas e capazes de dar origem a comunidades de fé viva e operosa, encontram-se hoje sujeitos a dura prova, e, por vezes, são atéradicalmente transformados pela contínua difusão do indiferentismo, do secularismo e do ateísmo. É o caso, em especial, dos países e das nações do chamado Primeiro Mundo, onde o bem-estar económico e o consumismo, embora misturada tantas vezes com situações tremendas de pobreza e de miséria, inspiram e permitem viver “como se Deus não existisse”».[30]
As comunidades cristãs devem ser capazes de assumir com responsabilidade e coragem esta demanda de renovação que a mudança do contexto cultural e social coloca à Igreja. Elas devem aprender a viver e a lidar com esta longa transição de figura, mantendo como ponto de referência, como estrela polar de orientação, o mandamento de evangelizar.
10. Primeira evangelização, cura pastoral, nova evangelização
A tarefa missionária, com a qual se conclui o Evangelho (cf. Mc. 16, 15s; Mt. 28,19s; Lc. 24,48s) estálonge de estar concluída; entrou numa nova fase. O Papa João Paulo II recordava jáque « os confins entre o cuidado pastoral dos fieis, a nova evangelização e a actividade missionária específica não são facilmente identificáveis, e não se deve pensar em criar entre esses âmbitos barreiras ou compartimentos estanques. [...] As Igrejas de antiga tradição cristã, por exemplo, preocupadas com a dramática tarefa da nova evangelização, estão mais conscientes de que não podem ser missionárias dos não cristãos de outros países e continentes, se não se preocuparem seriamente com os não cristãos da própria casa: a actividade missionária ad intra é sinal de autenticidade e de estímulo para realizar a outra ad extra, e vice-versa».[31] O cristão e a Igreja ou são missionários ou não são nada. Quem ama a sua fé preocupa-se também em dar testemunho dela e levá-la aos outros permitindo que possam participar dela. A falta de zelo missionário é falta de zelo pela fé. Pelo contrário, a fé fortalece-se com a sua transmissão. O texto do Papa parece querer traduzir o conceito de nova evangelização numa pergunta crítica e muito directa: estamos interessados em transmitir a fé e a ganhar para ela os não cristãos? Levamos verdadeiramente a peito a missão?
A nova evangelização éo nome dado a esta nova atenção da Igreja àsua missão fundamental, à sua identidade e razão de ser. Por isso, é uma realidade que não diz respeito apenas a algumas regiões bem definidas, mas éa estrada que permite explicar e pôr em prática a herança apostólica no nosso e para o nosso tempo. Com o programa da nova evangelização a Igreja pretende introduzir no mundo de hoje e na actual discussão a sua temática mais original e específica: a proclamação do Reino de Deus, iniciado em Jesus Cristo. Não hásituação eclesial que se possa sentir excluída de tal programa: as antigas Igrejas cristãs, com o problema do prático abandono da fé por parte de tantos e as novas Igrejas, empenhadas nos percursos de inculturação que requerem contínuas verificações para conseguir não apenas introduzir o Evangelho, que purifica e eleva essas culturas, mas sobretudo para as abrir à novidade do Evangelho; de um modo mais geral, tal programa diz respeito a todas as comunidades cristãs envolvidas no exercício de uma cura pastoral que parece cada vez mais difícil de gerir e corre o risco de se transformar numa routine pouco capaz de comunicar as razões para as quais nasceu.
Nova Evangelização é, então, sinónimo de missão; pede capacidade de recomeçar, de ir além, de ampliar os horizontes. A nova evangelização é o contrário da auto suficiência e de fechamento em si mesmo, da mentalidade do status quo e de uma visão pastoral que considera suficiente continuar a fazer como sempre se fez. Hoje, o “business as usual” já não basta. Como algumas Igrejas locais se empenharam em afirmar, éhora de a Igreja chamar as comunidades cristãs a uma conversão pastoral no sentido missionário da acção das suas estruturas[32].
Perguntas
As nossas comunidades cristãs enfrentam períodos de fortes mudanças nas suas figuras eclesiais e sociais.
1. Quais são as principais características desta mudança nas nossas Igrejas locais?
2. Como são vividos os traços de uma Igreja missionária, de uma Igreja capaz de estar no meio do povo, de uma Igreja «entre as casas de seus filhos e de suas filhas»?
3. Em que modo a nova evangelização soube restaurar a vida e o vigor da primeira evangelização ou da cura pastoral jáem acção? Como ajudou a vencer o cansaço e as dificuldades que surgem no quotidiano das nossas Igrejas locais?
4. Que perspectivas, que leituras da actual situação das diversas Igrejas locais foram feitas àluz da nova evangelização?
O mundo estápassando por mudanças profundas, que geram novos cenários e novos desafios para o cristianismo. Seis casos foram apresentados: um cenário cultural (a secularização), um social (a mistura dos povos), um mediático, um económico, um científico e um político. Propositadamente estes cenários foram descritos de modo genérico e uniforme.
5. Que figura específica assumiram no contexto das diversas Igrejas locais?
6. Como éque esses cenários interagiram com a vida das Igrejas locais? Como influenciaram as suas vidas?
7. Que questões e que desafios colocaram? Que respostas foram dadas?
8. Quais foram os principais obstáculos e as dificuldades maiores no colocar a questão de Deus dentro das questões do tempo? Quais as experiências que obtiveram maior sucesso?
Ao cenário religioso foi dado especial atenção.
9. Que transformações estáconhecendo o modo de vida das pessoas na experiência religiosa?
10. Que novas questões de espiritualidade, que novas necessidades religiosas estão emergindo? Hátradições religiosas novas que se vão afirmando?
11. Como éque as comunidades cristãs têm sido afectadas pela evolução do cenário religioso? Quais são as principais dificuldades? Quais as novas oportunidades?
A nova evangelização éa transformação que a Igreja pode imaginar para continuar a viver a própria missão de anúncio dentro destes novos cenários.
12. Que forma assumiu a nova evangelização nas Igrejas locais?
13. Que conteúdo, que forma tomou a audácia que écaracterística da nova evangelização? Que energias soube incutir àvida eclesial e pastoral?
14. Para designar quais acções e quais as dimensões da vida e acção da Igreja?
15. Como éque as Igrejas locais conseguiram assumir e fazer próprio o pedido do Papa João Paulo II, várias vezes repetido, de fazer uma autêntica «nova evangelização: nova no seu ardor, nos seus métodos, nas suas expressões»?
16. Como é que a celebração das Assembleias sinodais continentais ou regionais ajudaram as comunidades cristãs a elaborar um programa de nova evangelização?

SEGUNDO CAPÍTULO
Proclamar o Evangelho de Jesus Cristo
«Ide por todo o mundo e proclamai o Evangelho a toda a criatura» (Mc. 16, 15)
11. Objectivo da transmissão da fé: o encontro e a comunhão com Cristo
O mandato missionário que os discípulos receberam do Senhor (cf. Mc. 16, 15) contém uma referência explícita à proclamação e ao ensinamento do Evangelho («ensinando-os a obedecer a tudo o que vos ordenei» Mt. 28, 20). O apóstolo Paulo apresenta-se como «apóstolo [...] escolhido para anunciar o Evangelho de Deus» (Rm. 1, 1). A missão da Igreja é, assim, realizar atraditio Evangelii, o anúncio e a transmissão do Evangelho, que é «poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê» (Rm. 1, 16) e que, em última análise, se identifica com Jesus Cristo (cf. 1 Cor. 1, 24).[33] Falando do Evangelho, não devemos pensar apenas a um livro ou a uma doutrina; o Evangelho émuito mais do que isso: éuma Palavra viva e eficaz, que realiza o que afirma. Não éum sistema de artigos de fé e de preceitos morais, e ainda menos um programa político, mas uma pessoa: Jesus Cristo, Palavra definitiva de Deus, feito homem[34]. O Evangelho éEvangelho de Jesus Cristo: não tem somente como conteúdo Jesus Cristo. Jesus é, através do Espírito Santo, muito mais, éo promotor e o tema principal da sua mensagem, da sua transmissão. O objectivo da transmissão da fé é, portanto, a realização deste encontro com Jesus Cristo, no Espírito, para chegar a fazer a experiência do Seu e do nosso Pai[35].
Transmitir a fé significa criar em cada lugar e em cada tempo as condições para que o encontro entre os homens e Jesus Cristo aconteça. A fé, como encontro com a pessoa de Cristo, tem a forma da relação com Ele, da memória d’Ele (na Eucaristia) e do formar em nós a mentalidade de Cristo, na graça do Espírito. Como reafirmou o Papa Bento XVI, «ao início do ser cristão, não háuma decisão ética ou uma grande idéia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo. [...] Dado que Deus foi o primeiro a amar-nos (cf. 1 Jo 4, 10), agora o amor jánão é apenas um «mandamento», mas é a resposta ao dom do amor com que Deus vem ao nosso encontro»[36]. A própria Igreja toma forma a partir da realização desta tarefa de anunciar o Evangelho e da transmissão da fé cristã.
O resultado que se espera deste encontro é o de inserir os homens na relação do Filho com o Pai para sentir a força do Espírito. O fim da transmissão da fé, a finalidade da evangelização, é a de levar «por Cristo ao Pai no Espírito» (Ef. 2, 18)[37]; é esta a experiência da novidade do Deus cristão. Nesta perspectiva, transmitir a fé em Cristo significa criar as condições para uma fé pensada, celebrada, vivida e anunciada: isto significa inserir na vida da Igreja[38]. Esta é uma estrutura de transmissão profundamente enraizada na tradição eclesial. A essa faz referência oCatecismo da Igreja Católica, bem como o Compêndio do Catecismo, que a assume para a apoiar, a declinar e a relançar [39].
12. A Igreja transmite a fé que vive
A transmissão da fé é, portanto, uma dinâmica muito complexa que implica totalmente a fé dos cristãos e a vida da Igreja. Ninguém pode transmitir aquilo em que não acredita e que não vive. O sinal de uma fé bem arraigada e madura é, precisamente, o modo natural com que é transmitida aos outros. «Ele chamou os que queria [...] para que ficassem com ele e os enviar a pregar» (Mc. 3, 13-14). Não se pode transmitir o Evangelho se na base não houver um “estar” com Jesus, um viver com Jesus, no Espírito, a experiência do Pai; e, do mesmo modo, a experiência do “estar” impele ao anúncio, à proclamação, à partilha do que foi vivido, experimentando-o como bom, positivo e belo.
Uma tarefa semelhante de anúncio e de proclamação não estáreservada apenas a alguns, a uma elite. É um dom feito a todas as pessoas que respondem com confiança ao apelo da fé. A transmissão da fé não é uma acção para especialistas, a ser contratada a algum grupo ou a alguém especialmente dotado. É a experiência de cada cristão e de toda a Igreja, que nesta acção redescobre continuamente a sua identidade de povo reunido pelo chamamento do Espírito, que nos reúne da dispersão do nosso dia a dia para viver a presença entre nós de Cristo, e descobrir, assim, o verdadeiro rosto de Deus, que énosso Pai. «Os fiéis leigos, por força da sua participação no múnus profético de Cristo, estão plenamente envolvidos nessa tarefa da Igreja. Pertence-lhes, em particular, dar testemunho de como a fé cristã, mais ou menos conscientemente ouvida e invocada por todos, seja a única resposta plenamente válida para os problemas e as esperanças que a vida põe a cada homem e a cada sociedade. Será isso possível, se os fiéis leigos souberem ultrapassar em si mesmos a ruptura entre o Evangelho e a vida, refazendo na sua quotidiana actividade em família, no trabalho e na sociedade, a unidade de uma vida que no Evangelho encontra inspiração e força para se realizar em plenitude»[40].
Acção fundamental da Igreja, a transmissão da fé estrutura o rosto e as acções das comunidades cristãs[41]. Para anunciar e difundir o Evangelho é preciso que a Igreja edifique comunidades cristãs capazes de articular com precisão as obras fundamentais da vida de fé: caridade, testemunho, anúncio, celebração, escuta, partilha. É preciso conceber a evangelização como o processo através do qual a Igreja, animada pelo Espírito, anuncia e difunde o Evangelho em todo o mundo, seguindo uma lógica que a reflexão do Magistério sintetizou deste modo: «guiada pelo amor, permeia e transforma toda a ordem temporal, assumindo e renovando as culturas. Dá testemunho entre os povos do novo modo de ser e de viver que caracteriza os cristãos. Proclama explicitamente o Evangelho, mediante o primeiro anúncio, chamando àconversão. Inicia à fé cristã e à vida cristã, através da catequese e dos sacramentos da iniciação, os que se convertem a Jesus Cristo, ou os que empreendem o caminho do Seu seguimento, incorporando-os e reconduzindo-os à comunidade cristã. Alimenta constantemente o dom da comunhão entre os fiéis através da educação permanente da fé (homilia, ministério da Palavra), dos sacramentos e do exercício da caridade. Suscita continuamente a missão, enviando todos os discípulos de Cristo a anunciar o Evangelho, com palavras e obras, em todo o mundo»[42].
13. Palavra de Deus e transmissão da fé
Com a celebração do Concílio Vaticano II a Igreja Católica redescobriu que esta transmissão da fé, entendida como encontro com Cristo, realiza-se mediante a Sagrada Escritura e a Tradição viva da Igreja, sob a orientação do Espírito Santo [43]. É assim que a Igreja constantemente se regenera pelo Espírito. Deste modo as novas gerações são apoiadas no seu caminho de encontro com Cristo no seu corpo, que encontra a sua plena expressão na celebração da Eucaristia. A centralidade desta função de transmissão da fé foi revisitada e evidenciada nas últimas duas Assembleias do Sínodo sobre a Eucaristia e, em particular, naquele dedicado à Palavra de Deus na vida e na missão da Igreja. Nestas duas Assembleias, a Igreja foi convidada a reflectir e a recuperar a plena consciência da dinâmica profunda que sustenta a sua identidade: a Igreja transmite a fé que ela mesma vive, celebra, professa e testemunha[44].
Semelhante tomada de consciência conferiu à Igreja empenhos concretos e desafios com os quais medir esta sua missão de transmissão. É preciso amadurecer no povo de Deus uma maior consciência do papel da Palavra de Deus, do seu poder revelador e manifestante da intenção que Deus tem para com o homem, do seu desígnio de salvação[45]. Urge um maior cuidado com a proclamação da Palavra de Deus nas assembleias litúrgicas e uma dedicação mais convicta à tarefa da pregação[46]. É preciso uma atenção mais consciente e uma confiança mais firme no papel que a Palavra de Deus pode realizar na missão da Igreja, seja no momento específico do anúncio da mensagem da salvação, seja na posição mais reflexiva de escuta e de diálogo com as culturas [47].
Os Padres sinodais reservaram uma atenção particular ao anúncio da Palavra às novas gerações. «Muitas vezes encontramos nos jovens uma abertura espontânea à escuta da Palavra de Deus e umdesejo sincero de conhecer Jesus. Nos jovens muitas vezes encontramos uma abertura espontânea para a escuta da Palavra de Deus e um sincero desejo de conhecer Jesus. [...] Esta solicitude pelo mundo juvenil implica a coragem de um anúncio claro; devemos ajudar os jovens a ganharem confidência e familiaridade com a Sagrada Escritura, para que seja como uma bússola que indica a estrada a seguir. Para isso, precisam de testemunhas e mestres, que caminhem com eles e os orientem para amarem e por sua vez comunicarem o Evangelho sobretudo aos da sua idade, tornando-se eles mesmos arautos autênticos e credíveis»[48]. Do mesmo modo, os Padres sinodais apelaram também às comunidades cristãs para que «abram itinerários de iniciação cristãos quais, através da escuta da Palavra, da celebração da Eucaristia e do amor fraterno vivido na comunidade, possam dar início a uma fé cada vez mais adulta. A nova demanda decorrente da mobilidade e do fenómeno da emigração, que abre novas perspectivas à evangelização, deve ser considerada porque os imigrantes não sótêm necessidade de ser evangelizados, como podem também eles serem agentes de evangelização»[49].
Com as suas notas, a reflexão da Assembleia sinodal chamou as comunidades cristãs a examinarem até que ponto o anúncio da Palavra está na base da missão de transmitir a fé: «Por isso, énecessário descobrir cada vez mais a urgência e a beleza de anunciar a Palavra para a vinda do Reino de Deus, que o próprio Cristo pregou. [...] Todos nos damos conta de quão necessário éque a luz de Cristo ilumine cada âmbito da humanidade: a família, a escola, a cultura, o trabalho, o tempo livre e os outros sectores da vida social. Não se trata de anunciar uma palavra anestesiante, mas desinstaladora, que chama à conversão, que torna acessível o encontro com Ele, através do qual floresce uma humanidade nova»[50].
14. A pedagogia da fé
A transmissão da fé não se faz só com palavras mas exige um relacionamento com Deus através da oração e da própria fé em acção. E nesta educação para a oração é crucial a liturgia, com o seu papel pedagógico, no qual o sujeito que educa é o próprio Deus e o verdadeiro mestre da oração é o Espírito Santo.
A Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos dedicada à catequese tinha reconhecido como dom do Espírito – para além do florescimento, em número e dedicação, dos catequistas – a maturidade registada nos métodos que a Igreja soube desenvolver para implementar a transmissão da fé e permitir aos homens viver o encontro com Cristo[51]. São métodos de experiência que envolvem a pessoa humana. Métodos plurais, que activam de modo diferenciado as faculdades do indivíduo, a sua inserção num grupo social, as suas atitudes, as suas dúvidas e procuras. Esses métodos assumem como próprio instrumento a inculturação[52]. Para evitar o risco de dispersão e de confusão inerente a uma situação assim tão diversificada e em constante evolução, o Papa João Paulo II recolheu por aquela ocasião um exemplo dos Padres sinodais e fez dele uma regra: a pluralidade dos métodos na catequese pode ser um sinal de vitalidade e de genialidade, se cada um destes métodos souber interiorizar e fazer sua uma lei fundamental que é aquela da dupla fidelidade, a Deus e ao homem, numa mesma atitude de amor[53].
Ao mesmo tempo, o Sínodo sobre a catequese tinha como grande preocupação o de não perder os benefícios e os valores recebidos de um passado marcado pela preocupação de garantir uma transmissão sistemática da fé, integral, orgânica e hierárquica[54]. Por esse motivo, o Sínodo relançou dois instrumentos fundamentais para a transmissão da fé: a catequese e o catecumenado. Graças a eles, a Igreja transmite a fé de forma activa, semeando-a nos corações dos catecúmenos e dos que frequentam a catequese para fecundar as suas experiências mais profundas. A profissão de fé recebida pela Igreja (traditio), germinando e crescendo durante o processo catequético, é restituída (redditio), enriquecida, com os valores das diferentes culturas. O catecumenado transforma-se, assim, num importante centro de incremento da catolicidade e fermento de renovação eclesial.[55]
A revitalização destes dois instrumentos - o catecumenado e a catequese - destinava-se a incorporar aquela que foi designada como “pedagogia da fé”.[56] A este termo é confiada a função de ampliar o conceito de catequese, estendendo-o àquele de transmissão da fé. A partir do Sínodo sobre a catequese, esta não éoutra coisa que o processo de transmissão do Evangelho, assim como a comunidade cristão recebeu, o compreende, o celebra, o vive e o comunica[57]. «A catequese de iniciação, sendo orgânica e sistemática, não se reduz ao meramente circunstancial ou ocasional; sendo formação para a vida cristã, supera – incluindo-o – o mero ensino; e sendo essencial, visa àquilo que é «comum» para o cristão, sem entrar em questões disputadas, nem transformar-se em pesquisa teológica. Enfim, sendo iniciação, incorpora na comunidade que vive, celebra e testemunha a fé. Realiza, portanto, ao mesmo tempo, tarefas de iniciação, de educação e de instrução. Esta riqueza, inerente ao Catecumenado dos adultos não batizados, deve inspirar as demais formas de catequese»[58].
O catecumenado é entregue a nós, então, como o modelo que a Igreja recentemente assumiu para moldar os seus processos de transmissão da fé. Relançado pelo Concílio Vaticano II[59], o catecumenado foi integrado em tantos projectos de reorganização e revitalização da catequese, como modelo paradigmático de estruturação desta tarefa de evangelização. Assim, o Directório Geral para a Catequese sintetiza esses elementos básicos, sugerindo as razões pelas quais tantas Igrejas locais se inspiraram neste paradigma para reorganizar as suas práticas de anúncio e de preparação para a fé, dando mesmo origem a um novo modelo, o «catecumenado pós baptismal»[60], que recorda constantemente à Igreja a missão da iniciação à fé. Chama à responsabilidade toda a comunidade cristã. Coloca no centro de todo o percurso o mistério da Páscoa de Cristo. Faz da inculturação o princípio do próprio funcionamento pedagógico; é concebido como um verdadeiro e real processo formativo[61].
15. As Igrejas locais como agentes da transmissão
O sujeito da transmissão da fé é toda a Igreja e manifesta-se nas Igrejas locais. O anúncio, a transmissão e a experiência viva do Evangelho realizam-se nelas. Mas não apenas isso; as próprias Igrejas locais, além de sujeitos, são também o resultado dessa acção de anúncio do Evangelho e da transmissão da fé, como nos recorda a experiência das primeiras comunidades cristãs (cf. Act. 2, 42-47): o Espírito reúne os crentes em torno das comunidades que vivem fervorosamente a sua fé, alimentando-se da escuta da palavra dos Apóstolos e da Eucaristia, gastando as suas vidas na proclamação do Reino de Deus. O Concílio Vaticano II fixa essa descrição como fundamento da identidade de cada comunidade cristã, quando afirma que «esta Igreja de Cristo estáverdadeiramente presente em todas as legítimas comunidades locais de fiéis, as quais aderindo aos seus pastores, são elas mesmas chamadas igrejas no Novo Testamento. Pois elas são, no local em que se encontram, o novo Povo chamado por Deus, no Espírito Santo e com plena segurança (cf. 1 Tess. 1, 5). Nelas se congregam os fiéis pela pregação do Evangelho de Cristo e se celebra o mistério da Ceia do Senhor “para que o corpo da inteira fraternidade seja unido por meio da carne e sangue do Senhor”».[62]
A vida concreta das nossas Igrejas têm tido a sorte de ver, no campo da transmissão da fé e, mais geralmente, no campo do anúncio, uma realização concreta e, muitas vezes, exemplar desta afirmação do Concílio. O número de cristãos que nas últimas décadas se entregou de modo espontâneo e gratuito ao anúncio e à transmissão da fé é verdadeiramente notável e marcou a vida das nossas Igrejas locais como um verdadeiro dom do Espírito dado às nossas comunidades cristãs. As acções pastorais relacionadas com a transmissão da fé tornaram-se um lugar que permitiu à Igreja estruturar-se em diferentes contextos sociais locais demonstrando a riqueza e a variedade dos cargos e dos ministérios que a compõem e que animam a vida do dia a dia. Em redor do Bispo assistiu-se ao florescimento do papel dos padres, dos pais, dos religiosos, dos catequistas, das comunidades, cada um com a sua própria missão e a sua própria competência[63].
Junto a estes dons e aspectos positivos é preciso, no entanto, registar os desafios que a novidade da situação e as mudanças que o caracterizam colocam a várias Igrejas locais: a escassez da presença numérica dos presbíteros torna o resultado das suas acções menos eficaz do que se gostaria; o cansaço e o desgaste vivido por tantas famílias enfraquece o papel dos pais; o nível demasiado débil de partilha torna a influência da comunidade cristã evanescente. O risco éque o peso de uma acção assim tão importante e fundamental recaia apenas nos catequistas, játão sobrecarregados pelo peso do trabalho que lhes foi confiado e pela solidão com que se entregam a ele.
Como já foi mencionado no primeiro ponto, o clima cultural e a situação de cansaço em que se encontram várias comunidades cristãs corre o risco de enfraquecer a capacidade de anúncio, de transmissão e de educação para a fé das nossas Igrejas locais. A pergunta do apóstolo Paulo - «como acreditarão [...] se ninguém o anuncia? »(Rm. 10, 14) – soa aos nossos ouvidos hoje como muito real. Em tal situação, devem ser reconhecidos como um dom do Espírito a frescura e a energia que a presença dos grupos e movimentos conseguiram incutir na tarefa de transmitir a fé. Ao mesmo tempo, somos chamados a trabalhar para que estes frutos possam contagiar e comunicar o seu entusiasmo àquelas formas de catequese e de transmissão da fé que perderam o ardor inicial.
16. Apresentar razões: o estilo da proclamação
O contexto no qual nos encontramos pede às Igrejas locais, assim, um novo impulso, um novo acto de fé no Espírito que a conduz, para que possam assumir novamente, com alegria e entusiasmo, a tarefa fundamental pela qual Jesus enviou os seus discípulos: o anúncio da Evangelho (cf. Mc. 16, 15), a pregação do Reino (cf. Mc. 3, 15). É importante que cada cristão se sinta interpelado por este mandamento de Jesus, se deixe guiar pelo Espírito a dar-lhe a resposta, segundo a sua própria vocação. Num momento em que a escolha da fé e do seguimento de Cristo é menos fácil e pouco compreensível, e até por vezes contrastada e combatida, aumenta a responsabilidade da comunidade e dos cristãos de serem testemunhas e arautos do Evangelho, como o fez Jesus Cristo.
A lógica de tal comportamento é-nos sugerida pelo apóstolo Pedro quando nos convida àapologia, a apresentar razões, a «responder a quem perguntar da razão da esperança que existe em vós» (1 Pd. 3, 15). Uma nova temporada para o testemunho da nossa fé, uma nova forma de resposta (apo-logia) a quem nos pede o logos, a razão, da nossa fé são as vias que o Espírito indica às nossas comunidades cristãs: para nos renovar, para tornar presente no nosso mundo, com maior vigor, a esperança e a salvação que nos foi dada por Jesus Cristo. Trata-se de aprender, como cristãos, um novo estilo, de responder «com cortesia e respeito, com a consciência limpa» (1 Pd. 3, 16), com aquele vigor suave que vem da união com Cristo no Espírito e com aquela determinação de quem sabe ter como meta o encontro com Deus Pai, no seu Reino[64].
Esse estilo deve ser um estilo global, que abarca os pensamentos e as acções, os comportamentos pessoais e o testemunho público, a vida interna das nossas comunidades e o seu ardor missionário, a sua atenção à educação e à sua dedicação generosa para com os pobres, a capacidade de cada cristão de falar nos vários contextos em que vive e trabalha para comunicar o dom da esperança cristã. Este estilo deve fazer seu o zelo, a confiança e a liberdade de expressão (a parresia) que se manifestavam na pregação dos Apóstolos (cf. Act. 4, 31; 9, 27-28) e que o rei Agripa experimentou ao escutar Paulo: «Um pouco mais e quase me convencem a tornar-me um cristão! » (Act. 26, 28).
Numa altura em que tantas pessoas vivem a sua vida como uma experiência real do «deserto da escuridão de Deus, do vazio das almas sem mais consciência da dignidade e do caminho do homem», o Papa Bento XVI recorda-nos que «a Igreja no seu conjunto, e os Pastores nela, como Cristo, devem pôr-se a caminho, para conduzir os homens fora do deserto, para lugares da vida, da amizade com o Filho de Deus, para Aquele que dá a vida, a vida em plenitude»[65].
Este é o estilo que o mundo tem direito a encontrar na Igreja, nas comunidades cristãs, segundo a lógica da nossa fé [66]. Um estilo comunitário e pessoal; um estilo que chama a um exame as comunidades no seu conjunto, mas também cada um dos baptizados, como nos recorda o Papa Paulo VI: «ao lado da proclamação geral para todos do Evangelho, uma outra forma da sua transmissão, de pessoa a pessoa, continua a ser válida e importante. [...] Importaria, pois, que a urgência de anunciar a Boa Nova às multidões de homens, nunca fizesse esquecer esta forma de anúncio, pela qual a consciência pessoal de um homem é atingida, tocada por uma palavra realmente extraordinária que ele recebe de outro»[67].
17. Os frutos da transmissão da fé
A finalidade de todo o processo de transmissão da fé é a edificação da Igreja como comunidade de testemunhas do Evangelho. O Papa Paulo VI afirma: «Comunidade de crentes, comunidade de esperança vivida e comunicada, comunidade de amor fraterno, ela tem necessidade de ouvir sem cessar aquilo que ela deve acreditar, as razões da sua esperança e o mandamento novo do amor. Povo de Deus imerso no mundo, e não raro tentado pelos ídolos, ela precisa de ouvir, incessantemente, proclamar as grandes obras de Deus, que a converteram para o Senhor; precisa sempre ser convocada e reunida de novo por ele. Numa palavra, éo mesmo que dizer que ela tem sempre necessidade de ser evangelizada, se quiser conservar frescor, alento e força para anunciar o Evangelho»[68].
Os frutos que este processo contínuo de evangelização gera para a Igreja, como sinal da força vivificante do Evangelho, formam-se no confronto com os desafios do nosso tempo. Precisamos gerar famílias que sejam um sinal real e verdadeiro do amor e da partilha, capazes de se abrirem à esperança, porque abertas àvida; é preciso ter a força de construir comunidades dotadas de um verdadeiro espírito ecuménico e capazes de diálogo com outras religiões; urge a coragem de apoiar iniciativas de justiça social e de solidariedade, que coloquem no centro das atenções da Igreja os pobres; espera-se alegria no dar a própria vida num projecto vocacional ou de consagração. Uma Igreja que transmite a sua fé, uma Igreja da “nova evangelização” é capaz, em todos estes âmbitos, de mostrar o Espírito que a guia e que transfigura a história: a história da Igreja, dos cristãos, dos homens e das suas culturas.
Faz parte desta lógica de reconhecimento dos frutos também a coragem de denunciar as infidelidades e os escândalos emergentes nas comunidades cristãs, como sinal e consequência de momentos de fadiga e de cansaço neste âmbito do anúncio. A coragem de reconhecer as culpas; a capacidade de continuar a testemunhar Jesus Cristo, enquanto contamos a nossa contínua necessidade de salvação, sabendo que - como nos ensina o Apóstolo Paulo - podemos olhar para as nossas fraquezas porque éassim que reconheceremos o poder de Cristo que nos salva (cf. 2 Cor. 12, 9; Rm. 7,14 s); o exercício da penitência, o empenho em formas de purificação e a vontade de reparar as consequências de nossos erros; uma forte confiança de que a esperança que nos foi dada «não decepciona, porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado» (Rm. 5, 5) são também esses frutos de uma transmissão da fé, de uma proclamação do Evangelho que, em primeiro lugar, nunca deixa de renovar os cristãos, as suas comunidades, enquanto leva ao mundo o Evangelho de Jesus Cristo.
Perguntas
Fazer a experiência de Cristo éo objectivo da transmissão da fé, que deve ser partilhada com os que estão perto e os que estão longe. Essa incentiva-nos àmissão.
1. De que modo as nossas comunidades cristãs são capazes de oferecer lugares eclesiais que sejam instrumentos de experiência espiritual?
2. De que modo os nossos caminhos de fé alcançam a adesão intelectual àverdade cristã, e como conseguem fazer viver experiências reais de encontro e de comunhão, de “habitação” no mistério de Cristo?
3. Em que modo as várias Igrejas encontraram soluções e respostas para a questão da experiência espiritual que atravessa também as jovens gerações de hoje?
A Palavra e a Eucaristia são os principais veículos, a melhor maneira, de viver a fé cristã como uma experiência espiritual.
4. Em que modo as duas precedentes Assembleias sinodais ajudaram as comunidades cristãs a aumentar a qualidade da escuta da Palavra nas nossas Igrejas? De que forma contribuiu para aumentar a qualidade das nossas celebrações eucarísticas?
5. Quais foram os elementos com melhor recepção? Que reflexões e sugestões estão ainda à espera de ser acolhidas?
6. Em que medida os grupos de escuta e de partilha da Palavra de Deus se estão a tornar um instrumento comum de vida cristã para as nossas comunidades? Em que modo as nossas comunidades expressam a centralidade da Eucaristia (celebrada, adorada) e, partindo dela, estruturam as suas acções e as suas vidas?
Depois de décadas de forte efervescência, o campo da catequese estádando sinais de fadiga e cansaço, antes de mais a nível dos sujeitos chamados a apoiar e animar esta actividade eclesial.
7. Qual éa experiência concreta das nossas Igrejas?
8. Como se procurou reconhecer e dar firmeza, nas comunidades cristãs, à figura do catequista? Como se tentou concretizar e dar eficácia ao reconhecimento de um papel activo também a outros agentes na tarefa de transmitir a fé (pais, padrinhos, da comunidade cristã)?
9. Que iniciativas foram concebidas para apoiar os pais, para os incentivar a um trabalho (a transmissão e, conseuentemente, a transmissão da fé) que a cultura cada vez menos lhes reconhece como tendo sido atribuída a eles ?
Nas últimas décadas, respondendo também a um pedido do Concílio Vaticano II, várias Conferências Episcopais empenharam-se em projectos de reprogramação dos percursos e dos textos de catequese.
10. Qual éa situação destes projectos?
11. Que benefícios produziram no processo de transmissão da fé? Com que dificuldades e obstáculos se debateram?
12. Que instrumentos proporcionou a publicação do Catecismo da Igreja Católica neste percurso de reprogramação?
13. Como éque cada uma das comunidades cristãs (paróquias) e os diversos grupos e movimentos trabalham para garantir na prática uma catequese o mais possível eclesial e projectada de modo conforme e concorde com os outros agentes eclesiais?
14. No seguimento das fortes mudanças culturais que ocorrem, quais são as instâncias pedagógicas face às quais a actividade catequética das nossas Igrejas se sente mais desprotegida e fragilizada?
15. Como éque o catecumenado foi assumido como modelo a partir do qual construir o projecto de catequese e de educação para a fé nas comunidades cristãs?
A situação da nossa época exige da Igreja um renovado estilo de evangelização, uma nova disponibilidade para dar conta da nossa fé e da esperança que nos habita.
16. Como éque as Igrejas locais têm sido capazes de disseminar esta nova exigência nas comunidades cristãs? Quais foram os resultados? Quais as dificuldades e as resistências?
17. A urgência de um novo anúncio missionário tornou-se uma componente habitual das acções pastorais das comunidades? A mensagem de que a missão agora também se vive nas nossas comunidades cristãs locais, no nosso contexto de vida normal, conseguiu passar?
18. Que outros sujeitos, para além da comunidade, animam o tecido social, levando-lhes o anúncio do Evangelho? Com que acções e métodos? Com que resultados?
19. De que modo cada baptizado tomou consciência de ser chamado, na primeira pessoa, a este anúncio? Que experiências se podem contar a este propósito?
O anúncio e a transmissão da fé geram, como fruto, a comunidade cristã.
20. Quais são os principais frutos que a transmissão da fé tem gerado nas vossas Igrejas?
21. Estarão as comunidades cristãs preparadas para reconhecer esses frutos, para os sustentar e fazer crescer? De que frutos se sente mais a falta?
22. Que resistências, que problemas e também que escândalos se opõem a este anúncio? Como éque as comunidades têm sido capazes de viver estes momentos retirando daías forças para um renovado impulso espiritual e missionário?
TERCEIRO CAPÍTULO
Iniciação à experiência cristã
«Fazei discípulos de todas as nações, baptizando-os em nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo, ensinando-os a obedecer a tudo o que vos tenho ordenado» (Mt. 28, 19-20)
18. A iniciação cristã, processo de evangelização
A reflexão sobre a transmissão da fé que acaba de ser apresentada, juntamente com as mudanças sociais e culturais que se apresentam ao cristianismo hodierno como um desafio, levaram a Igreja a um grande processo de reflexão e de revisão dos percursos de introdução à fé e de acesso aos sacramentos. As afirmações do Concílio Vaticano II,[69] que quando foram escritas soavam para tantas comunidades cristãs como um desejo, hoje, pelo contrário, tornaram-se realidade em várias igrejas locais. É possível fazer experiência de muitos elementos ali enumerados começando, sem dúvida, pela tomada de consciência, hoje amadurecida por todo o lado, da ligação intrínseca que une os sacramentos da iniciação cristã. Baptismo, Confirmação e Eucaristia são vistos não mais como três sacramentos separados mas como etapas de uma viagem de geração para a vida cristã adulta dentro de um percurso orgânico de iniciação à fé. A iniciação cristã é, agora, um conceito e um instrumento pastoral conhecido e bem estabelecido nas igrejas locais.
Neste processo, as Igrejas locais que têm uma tradição secular de iniciação à fé devem muito às Igrejas mais jovens. Juntos aprenderam a tomar como modelo do caminho de iniciação à fé o adulto e não já a criança[70]. Conseguiu-se dar importância ao sacramento do baptismo, assumindo a estrutura do catecumenado antigo como um exemplo, para organizar os dispositivos pastorais que nos nossos contextos culturais permitem uma celebração mais consciente, mais preparada e capaz de garantir a participação futura na vida cristã dos recém baptizados. Muitas comunidades cristãs empreenderam revisões significativas das suas práticas de baptismo, revendo formas de participação dos pais, no caso do baptismo das crianças, e explicitando o momento da evangelização, do anúncio explícito da fé. Tentaram organizar as celebrações do sacramento do baptismo de modo a dar mais espaço ao envolvimento da comunidade e dando um apoio mais visível aos pais na missão, como a da educação cristã, que cada vez mais se torna difícil. Ouvindo a experiência das Igrejas Católicas Orientais, recorreu-se à mistagogia, para pensar percursos de iniciação cristã que não se fiquem no limiar da celebração sacramental, mas que continuem a sua acção formadora mesmo depois, para recordar de modo explícito que o objectivo éo de educar para uma fé cristã adulta[71].
A confrontação iniciada acendeu uma reflexão teológica e pastoral que, tendo em conta as peculiaridades dos diferentes ritos, ajuda a Igreja a encontrar uma reestruturação partilhada das suas práticas de introdução e de educação para a fé. Emblemático a este propósito é a questão da ordem dos Sacramentos da iniciação. Na Igreja existem tradições diferentes. Essa diversidade manifesta-se claramente nos costumes eclesiais do Oriente e mesmo na prática do Ocidente em relação à iniciação dos adultos, em comparação com o das crianças. Tal diversidade encontra uma ulterior acentuação no modo como é vivido e celebrado o sacramento da Confirmação.
Podemos dizer, certamente, que o rosto do futuro cristianismo no mundo e a capacidade da fé cristã de falar à sua cultura dependerá do modo como a Igreja no Ocidente souber gerir a revisão das suas práticas baptismais. Nem tudo, porém, neste processo de revisão, funcionou sempre em termos positivos. Houve mal-entendidos, ou seja, a vontade de interpretar as mudanças necessárias, vistas como uma oportunidade, para introduzir as lógicas da ruptura: as novas práticas pastorais eram lidas à luz de uma hermenêutica de ruptura criativa, que via na novidade a possibilidade de dar um parecer sobre o passado recente da Igreja e, ao mesmo tempo, a possibilidade de estabelecer formas sociais inéditas para dizer e viver o cristianismo hoje. Neste contexto, chegou-se a falar da necessidade absoluta de abandonar a prática de baptizar as crianças. Do mesmo modo, um sério obstáculo à revisão em curso veio dos comportamentos inertes mantidos por algumas comunidades cristãs, na convicção de que a mera repetição dos gestos estereotipados fosse uma garantia de bondade e de sucesso para a actividade da igreja.
O processo de revisão entrega à Igreja alguns lugares e alguns problemas como autênticos desafios, que põem as comunidades cristãs diante da obrigação de discernir e, depois, de adoptar novos estilos de acção pastoral. Écertamente um desafio para a Igreja encontrar neste momento uma colocação partilhada do sacramento da Confirmação. O pedido foi feito também durante a Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos sobre a Eucaristia, e retomada pelo Papa Bento XVI na posterior exortação pós-sinodal.[72]As Conferências Episcopais adoptaram, num passado recente, diferentes escolhas a este respeito, motivadas pelas diversas perspectivas a partir das quais era lida a questão (pedagógica, sacramental, eclesial). Assim também se apresenta como um desafio à Igreja a capacidade de dar conteúdo e força àquela dimensão mistagógica dos percursos de iniciação, sem a qual aqueles mesmos itinerários resultariam desprovidos de um ingrediente essencial do processo de construção da fé. Apresenta-se como um desafio posterior, enfim, a necessidade de não delegar a eventuais percursos escolásticos de educação religiosa a tarefa, que é exclusiva da Igreja, de proclamar o Evangelho e encaminhar para a fé, mesmo em relação às crianças e adolescentes. As práticas neste sector são muito diferenciadas, de nação para nação, e não permitem a elaboração de respostas únicas ou uniformes. Mas o exemplo é válido para todas as Igrejas locais.
Como se pode imaginar, o campo da iniciação é, realmente, um ingrediente essencial da tarefa de evangelizar. A “nova evangelização” tem muito a dizer sobre isso: é preciso, de facto, que a Igreja continue, de modo forte e determinado, aqueles exercícios de discernimento jáem curso e, ao mesmo tempo, que encontre energias para motivar os sujeitos e aquelas comunidades que vão dando sinais de cansaço e de resignação. O rosto futuro das nossas comunidades depende muito do esforço investido nesta acção pastoral e das iniciativas concretas propostas e implementadas para uma sua revisão e relançamento.
19. Primeiro anúncio e necessidade de novas formas de discurso sobre Deus
O processo de revisão dos percursos de iniciação à fé deu acrescida relevância a um desafio muito presente na situação actual: a progressiva dificuldade com que os homens e as mulheres de hoje sentem em falar de Deus acedem a lugares e experiências que os abrem a um tal discurso. Trata-se de uma dificuldade com a qual a Igreja se está a confrontar desde há algum tempo e que, portanto, não somente foi denunciada mas também conheceu já algumas tentativas de resposta. O Papa Paulo VI, reconhecendo este desafio, colocou a Igreja diante da urgência de encontrar novos caminhos para a proposta da fé cristã.[73] Nasceu, assim, o instrumento do “primeiro anúncio”,[74] entendido como meio de proposta explícita, ou melhor, de proclamação, do conteúdo básico de nossa fé.
Assumido plenamente nos trabalhos de reprogramação em curso dos itinerários de introdução à fé, o primeiro anúncio dirige-se aos não crentes, aos que, de facto, vivem na indiferença religiosa. Este primeiro anúncio tem a função de anunciar o Evangelho e a conversão àqueles que de um modo geral ainda não conhecem Jesus Cristo. A catequese, distinta do primeiro anúncio do Evangelho, promove e faz amadurecer esta conversão inicial, educando o convertido para a fé e incorporando-o na comunidade cristã. A relação entre estas duas formas de ministério da Palavra não é, porém, sempre fácil de fazer e não deve necessariamente ser afirmada de modo nítido. Trata-se de uma dúplice atenção que muitas vezes se encontra combinada na mesma acção pastoral. Acontece com frequência, de facto, que as pessoas que vão à catequese precisam de experimentar ainda uma verdadeira conversão. Portanto, seráútil prestar maior atenção, nos percursos de catequese e de educação para a fé, ao anúncio do Evangelho que chama a esta conversão, que a provoca e a sustenta. É este o modo com o qual a nova evangelização estimula os percursos habituais de educação para a fé, acentuando o seu carácter kerigmatico, de anúncio[75].
Uma primeira resposta directa ao desafio lançado foi já, portanto, dada. Mas, para além da resposta directa, o discernimento que estamos a realizar pede-nos que façamos uma pausa para compreender mais profundamente as razões desta alienação, por parte da nossa cultura, a propósito do discurso sobre Deus. Importa, antes de mais, examinar por que é que esta situação não interessou as próprias comunidades cristãs[76]. É preciso, sobretudo, na procura das formas e nos instrumentos de elaboração do discurso sobre Deus, que saibamos interceptar as expectativas e as ansiedades das pessoas de hoje, mostrando-lhes como a novidade que Cristo representa seja o dom que todos nós esperamos, ao qual todo o homem anela como cumprimento não expresso da sua busca de sentido e da sua sede de verdade. O esquecimento do discurso sobre Deus transformar-se-á, assim, numa ocasião para o anúncio missionário. A vida do dia a dia será capaz de nos sugerir onde identificar aqueles “pátio dos gentios”[77] nos quais as nossas palavras se tornam não somente audíveis, mas também significativas e medicinais para a humanidade. A tarefa da “nova evangelização” é levar não apenas os cristãos praticantes, mas também os que colocam perguntas sobre Deus e O procuram, a perceber o seu chamamento pessoal na sua consciência. A nova evangelização é um convite às comunidades cristãs para que depositem mais confiança no Espírito que as conduz dentro da história. Serão, assim, capazes de vencer os medos que sentem e conseguirão ver com maior lucidez os lugares e caminhos onde colocar a questão de Deus no centro da vida das pessoas de hoje.
20. Iniciar à fé, educar para a verdade
A necessidade de um discurso sobre Deus traz, como consequência, a possibilidade e a necessidade de um análogo discurso sobre o homem. A evangelização exige-o por si mesma, como uma ligação directa. Existe uma forte ligação entre a iniciação na fé e a educação. Afirmou-o já o Concílio Vaticano II[78] e repetiu recentemente esta convicção o Papa Bento XVI: «Há quem ponha em questão hoje o compromisso da Igreja na educação, perguntando-se se os seus recursos não poderiam ser melhor empregues noutras partes. [...] A missão, primária na Igreja, de evangelizar, na qual as instituições educativas desempenham um papel fundamental, está em sintonia com a aspiração fundamental da nação de desenvolver uma sociedade verdadeiramente elevada à dignidade da pessoa humana. Mas por vezes o valor da contribuição da Igreja para o debatepúblico é posto em questão. Por isso é importante recordar que a verdade da fé e a da razão nunca se contradizem entre si ».[79] A Igreja com a verdade revelada purifica a razão e ajuda a reconhecer as verdades últimas como fundamento da moralidade humana e da ética humana. A Igreja, por sua própria natureza, apoia as categorias morais essenciais, mantendo viva a esperança na humanidade.
As palavras do Papa Bento XVI enumeram as razões pelas quais é natural que a evangelização e a iniciação à fé sejam acompanhadas por uma acção educativa que a Igreja exerce como serviço ao mundo. Hoje somos chamados a realizar esta tarefa num momento e num contexto cultural em que todas as formas de acção educativa são mais difíceis e críticas, a tal ponto que o próprio Papa fala de “emergência educativa”.[80]
Com o termo “emergência educativa” o Papa pretende fazer alusão às progressivas dificuldades que hoje encontra não somente a actividade educativa cristã mas, mais genericamente, todo o tipo de educação. É cada vez mais difícil transmitir às novas gerações os valores básicos da existência e de um comportamento correcto. E esta dificuldade vivem-na os pais, que vêem cada vez mais reduzida a sua capacidade de influenciar o processo educacional, mas também os órgãos de educação designados para essa tarefa, a começar pela escola.
Uma tal deriva era, em parte, previsível: numa sociedade e numa cultura que fazem muitas vezes do relativismo o seu credo é natural que comece a faltar a luz da verdade. Considera-se que é muito difícil falar da verdade, recorrendo-se imediatamente ao termo “autoritário”, e acaba-se por duvidar da bondade da vida – é bom ser homem? é bom viver? – e da importância das relações e dos compromissos que compõem a vida. Em tal contexto como serápossível propor aos mais jovens e transmitir de geração em geração alguma coisa de válido e de certo, regras de vida, um autêntico significado e objectivos verdadeiramente convincentes para a existência humana, seja como indivíduos seja como comunidades? Por isso, a educação tende a reduzir-se muito à transmissão de determinadas habilidades, ou capacidades de fazer, enquanto se tenta satisfazer o desejo de felicidade das novas gerações enchendo-as de objectos de consumo e de gratificações efémeras. Assim, pais e professores são facilmente tentados a abdicar das suas funções educativas e de nem sequer perceberem bem qual o seu papel, a missão que lhes foi confiada.
E aqui está a emergência educativa: já não somos capazes de oferecer aos jovens, às novas gerações, aquilo que é nosso dever transmitir. Temos, para com eles, a dívida dos verdadeiros valores que dão fundamento à vida. Acaba assim rejeitada e esquecida a finalidade essencial da educação, que é a formação da pessoa a ponto de a tornar capaz de viver plenamente e de contribuir para o bem-estar da comunidade. Cresce, no entanto, em vários lugares, a demanda por uma educação autêntica e a redescoberta da necessidade de educadores que sejam considerados como tais. Um tal pedido vê os pais unidos (preocupados e muitas vezes angustiados com o futuro dos seus filhos), os professores (que vivem a triste experiência da degradação da escola), a própria sociedade, que vê minadas as próprias bases da convivência.
Neste contexto, o empenho da Igreja no educar para a fé, e para o seguimento do Senhor, assume, mais do que nunca, o valor de uma contribuição para fazer sair a sociedade em que vivemos da crise educacional que a aflige, metendo um travão àdesconfiança e àquele estranho “ódio a si mesmo”, àquelas formas de masoquismo que parecem ter-se tornado uma das características de algumas das nossas culturas. Um semelhante esforço pode proporcionar aos cristãos uma boa ocasião para habitar o espaço público das nossas sociedades propondo novamente a questão de Deus, e levando-lhes a sua tradição educativa como um dom, o fruto que as comunidades cristãs, guiadas pelo Espírito Santo, souberam produzir neste domínio.
A Igreja possui a este propósito uma tradição, ou um capital histórico de recursos pedagógicos, reflexões e pesquisas, instituições, pessoas - consagradas e outras, inseridas em ordens religiosas, em congregações – que podem oferecer uma presença significativa no mundo da escola e da educação. Além disso, interessado pelas transformações sociais e culturais em curso, este capital estápassando, também ele, por mudanças significativas. Será útil, portanto, imaginar igualmente um discernimento neste sector, para identificar os pontos críticos que as mudanças estão gerando. Temos de reconhecer as energias do futuro, os desafios que precisam de uma educação adequada, sabendo que a tarefa fundamental da Igreja é a de educar para a fé e para o testemunho, ajudando a estabelecer uma relação viva com Cristo e com o Pai.
21. O objectivo de uma “ecologia da pessoa humana”
O objectivo de todo este empenho educativo da Igreja éfacilmente identificável. Trata-se de trabalhar na construção daquilo a que o Papa Bento XVI chamou de “ecologia da pessoa humana”. «Requer-se uma espécie de ecologia do homem, entendida no justo sentido. [...] O problema decisivo é a solidez moral da sociedade em geral. Se não é respeitado o direito àvida e àmorte natural, se se tornam artificiais a concepção, a gestação e o nascimento do homem, se são sacrificados embriões humanos na pesquisa, a consciência comum acaba por perder o conceito de ecologia humana e, com ele, o de ecologia ambiental. É uma contradição pedir às novas gerações o respeito do ambiente natural, quando a educação e as leis não as ajudam a respeitar-se a si mesmas. O livro da natureza é uno e indivisível, tanto sobre a vertente do ambiente como sobre a vertente da vida, da sexualidade, do matrimónio, da família, das relações sociais, numa palavra, do desenvolvimento humano integral. Os deveres que temos para com o ambiente estão ligados com os deveres que temos para com a pessoa considerada em si mesma e em relação com os outros; não se podem exigir uns e espezinhar os outros. Esta éuma grave antinomia da mentalidade e do costume actual, que avilta a pessoa, transtorna o ambiente e prejudica a sociedade »[81].
A fé cristã defende a inteligência na compreensão do equilíbrio profundo que rege a estrutura da existência e da sua história. Realiza esta operação, não de modo genérico ou a partir do exterior, mas partilhando com a razão a sede de conhecimento, a sede de investigação, orientando-a para o bem do homem e do cosmos. A fé cristã contribui para a compreensão do conteúdo profundo das experiências humanas fundamentais, como mostra o texto que acabamos de citar. É uma responsabilidade - o confronto e o reenvio - que o catolicismo desenvolve desde há muito tempo. Para isso se foi preparando cada vez melhor, dando vida a instituições, centros de investigação, universidades, fruto da intuição ou do carisma de alguns ou das preocupações no campo da educação das Igrejas locais. Estes institutos exercem as suas funções habitando o espaço comum da investigação e do desenvolvimento do conhecimento nas diversas culturas e sociedades. As mudanças sociais e culturais que apresentámos desafiam a levantar questões e a criar desafios a essas instituições. O discernimento que está por trás da “nova evangelização” é chamado a ocupar-se deste compromisso cultural e educacional da Igreja. Poderão, assim, identificar-se os pontos críticos destes desafios, as energias e as estratégias a adoptar para garantir o futuro não sóda Igreja mas também do homem e da humanidade.
Imaginar todos estes espaços culturais como “pátio dos gentios”, ajudando-os a viver a sua vocação inicial dentro dos novos cenários que emergem, ou seja, a de levar de forma positiva a questão de Deus e a experiência da fé cristã para dentro das questões do tempo; ajudar estes espaços a tornarem-se lugares onde se formam pessoas livres e maduras capazes, por sua vez, de levar a questão de Deus para dentro de suas vidas, para o trabalho, para a família é, certamente, uma das tarefas da “nova evangelização”.
22. Evangelizadores e educadores porque testemunhas
O contexto de emergência educativa no qual nos encontramos dáainda mais força às palavras do Papa Paulo VI: «O homem contemporâneo escuta com melhor boa vontade as testemunhas do que os mestres, ou então se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas. [...] Será pois, pelo seu comportamento, pela sua vida, que a Igreja háde, antes de mais nada, evangelizar este mundo; ou seja, pelo seu testemunho vivido com fidelidade ao Senhor Jesus, testemunho de pobreza, de desapego e de liberdade frente aos poderes deste mundo; numa palavra, testemunho de santidade»[82]. Qualquer projecto de “nova evangelização”, qualquer projecto de anúncio e de transmissão da fé, não pode ignorar esta necessidade de ter homens e mulheres que com a sua conduta de vida, dão força ao empenho evangelizador que vivem. É esta sua exemplaridade a mais valia que confirma a verdade da sua dedicação, do conteúdo de quanto ensinam e do que pedem para as suas vidas. A actual emergência educativa faz crescer o problema dos educadores que saibam ser testemunhas credíveis daquela realidade e dos valores sobre os quais é possível fundar tanto a vida pessoal de cada homem, como os projectos comuns do viver social. Neste sentido, temos excelentes exemplos. Basta recordar São Paulo, São Patrício, São Bonifácio, São Francisco Xavier, São Cirilo e Metódio, São Turíbio de Mongrovejo, São Damião de Veuster, Madre Teresa de Calcutá.
Esta solicitude torna-se para a Igreja de hoje numa tarefa de apoio e formação de tantas pessoas que desde hámuito se empenham nestes trabalhos de evangelização e educação (bispos, sacerdotes, catequistas, educadores, professores, pais); das comunidades cristãs, chamadas a dar um maior reconhecimento e a investir maiores recursos nesta tarefa essencial para o futuro da Igreja e da humanidade. É preciso afirmar claramente a essencialidade deste ministério de evangelização, de anúncio e de transmissão, no interior das nossas Igrejas. É preciso que cada comunidade reveja as prioridades das suas acções, para concentrar energias e forças neste esforço comum de “nova evangelização”.
Para que a fé seja alimentada e sustentada tem inicialmente necessidade daquele âmbito originário que éa família, primeiro lugar de educação para a oração[83]. Na espaço familiar a educação para a fé pode surgir, essencialmente, na forma de educar a criança a rezar. Rezar juntamente com os filhos ajuda os pais naquela missão de os acostumar a reconhecer a presença amorosa do Senhor, permitindo-lhes de se tornarem novamente testemunhas autorizadas junto da criança.
A formação e o cuidado com que deverão apoiar não somente os evangelizadores já em exercício, mas apelar também a novas forças, não se reduziráa uma mera preparação técnica, ainda que necessária. Será, antes de mais, uma formação espiritual, uma escola de fé, à luz do Evangelho de Jesus Cristo, sob a guia do Espírito, para viver a experiência da paternidade de Deus. Só quem se deixou e se deixa evangelizar, só quem é capaz de se deixar renovar espiritualmente pelo encontro e pela comunhão de vida com Jesus Cristo, pode evangelizar. Pode transmitir a fé, como nos testemunha o apóstolo Paulo: «Acreditei, por isso falei» (2 Cor. 4, 13).
Assim, a nova evangelização é, principalmente, uma tarefa e um desafio espiritual. É um dever dos cristãos que perseguem a santidade. Neste contexto, e com este modo de compreender a formação, será útil dedicar tempo e espaço a um diálogo sobre as instituições e os instrumentos que as Igrejas locais dispõem para fazer dos baptizados pessoas conscientes da sua missão missionária e evangelizadora. Perante os cenários da nova evangelização, as testemunhas para serem credíveis devem saber falar a linguagem do seu tempo anunciando, assim, a partir de dentro, as razões da esperança que as anima (cf. 1 Pd. 3, 15). Semelhante tarefa não pode ser imaginada de forma espontânea, exige atenção, educação e cuidado.
Perguntas
O projecto da nova evangelização é concebido como um exercício de revisão de todos os lugares e acções que a Igreja possui para proclamar o Evangelho ao mundo.
1. O dispositivo de “primeiro anúncio” éconhecido e difundido nas comunidades cristãs?
2. As comunidades cristãs constroem acções pastorais que visam a proposta específica de adesão ao Evangelho, da conversão ao cristianismo?
3. Em termos mais gerais, como é que as comunidades cristãs particulares lidam com a necessidade de desenvolver novas maneiras de falar de Deus dentro da sociedade e até mesmo dentro das nossas próprias comunidades? Que experiências significativas é útil partilhar com as outras igrejas?
4. Como é que o projecto “pátio dos gentios” foi assumido e desenvolvido nas Igrejas locais?
5. A que nível de prioridade foi elevado o compromisso assumido pelas comunidades cristãs de ousar formas novas de evangelização? Quais foram as iniciativas mais bem sucedidas de abertura missionária das comunidades missionárias cristãs?
6. Que experiências, que instituições, que novas agregações ou grupos nasceram ou se espalharam, com o objectivo de realizarem um anúncio jubiloso e contagiante do Evangelho aos homens?
7. Que colaborações entre as comunidades paroquiais e estas novas experiências?
A Igreja fez grandes esforços para reestruturar os seus próprios percursos de iniciação e educação para a fé.
8. De que forma a experiência da iniciação cristã dos adultos foi tomada como modelo para repensar os caminhos da iniciação à fé nas nossas comunidades?
9. Quanto e como foi assumido o instrumento da iniciação cristã? De que forma ajudou a repensar os caminhos da pastoral baptismal e a acentuação da ligação entre os sacramentos do Baptismo, da Confirmação e da Eucaristia?
10. As Igrejas orientais católicas administram de forma unificada os sacramentos da iniciação cristã às crianças. Quais são as vantagens e as características desta sua experiência? Como se sentem solicitadas pelas reflexões e mudanças em marcha, no que concerne òiniciação cristã?
11. Como é que o “catecumenado baptismal” inspirou a revisão dos percursos de preparação para os sacramentos, transformando-os em itinerários de iniciação cristã, capazes de envolver de modo activo os vários membros da comunidade (especialmente adultos) e não apenas as diversas partes interessadas? Como éque as comunidades cristãs se colocam ao lado dos pais, na tarefa de transmitir a fé que sempre se faz mais árdua?
12. Que evoluções conheceu o sacramento da Confirmação dentro deste percurso? Que motivações levaram a isso?
13. Como foi possível concretizar os itinerários mistagógicos?
14. Até que ponto as comunidades cristãs conseguiram transformar o caminho de educação para a fé numa pergunta dirigida, antes de mais, aos adultos subtraindo-a deste modo aos riscos de uma sua localização exclusiva na idade da infância?
15. As igrejas locais estão a desenvolver reflexões explícitas sobre o papel do anúncio e sobre a necessidade de dar maior importância à geração da fé, à pastoral do baptismo?
16. Foi superada a fase de delegar a tarefa da educação para a fé por parte das comunidades paroquiais a outras entidades de educação religiosa (por exemplo, a instituições de ensino, confundindo os caminhos de educação para a fé com outras eventuais formas de educação cultural para a facto religioso)?
O desafio educacional interpela as nossas igrejas como uma verdadeira e real emergência.
17. Com que grau de sensibilidade foi acolhida? E com que energias?
18. Como éque a presença de instituições católicas no mundo da escola ajuda a enfrentar este desafio? Quais as mudanças que interessaram a essas instituições? Com que recursos conseguem responder a esses desafios?
19. Que ligação subsiste entre estas instituições e as outras instituições eclesiais, entre estas instituições e a vida paroquial?
20. Como é que essas instituições conseguem ter uma voz na sociedade e na cultura enriquecendo os movimentos culturais do pensamento e discussões com a voz da fé cristã?
21. Que relação existe entre estas instituições católicas e as outras instituições educativas, entre elas e a sociedade?
22. De que modo as grandes instituições culturais (universidades católicas, centros culturais, centros de investigação), que a história nos legou, conseguem intervir nos debates que afectam os valores fundamentais do homem (defesa da vida, da família, da paz, da justiça, da solidariedade, da criação)?
23. Como conseguem ser instrumento que ajuda o homem a ampliar os limites da sua razão, a procurar a verdade, a reconhecer as marcas do plano de Deus que dásentido ànossa história? E, assim consideradas, como ajudam as comunidades cristãs a decifrar e a promover a escuta das perguntas e das expectativas mais profundas expressas pela cultura de hoje?
24. De que modo conseguem essas instituições imaginar-se dentro daquela experiência denominada de “pátio dos gentios”? Conseguem elas imaginar-se como lugares onde os cristãos vivem a audácia de alinhavar formas de diálogo que acedem aos anseios mais profundos do homem e a sua sede de Deus; e de colocar nesses contextos a questão de Deus partilhando a própria experiência de busca contando como um dom o encontro com o Evangelho de Jesus Cristo?
O projecto da nova evangelização exige formas, programas e percursos de formação para e anúncio e o testemunho.
25. Como éque as comunidades cristãs vivem a urgente necessidade de chamar, formar e apoiar as pessoas que podem ser evangelizadores e educadores porque testemunhas?
26. Que ministérios, instituídos, mas mais frequentemente “de facto”, as Igrejas locais viram (ou incentivaram) surgir com este objectivo claro de evangelização?
27. Como éque as paróquias se deixaram inspirar a propósito da vitalidade de alguns movimentos e realidades carismáticas?
28. Várias Conferências Episcopais nas últimas décadas fizeram da missão e da evangelização os elementos centrais e a prioridade nos seus projectos pastorais: que resultados se obtiveram? Como conseguiram sensibilizar as comunidades cristãs sobre a qualidade “espiritual” deste desafio missionário?
29. Como éque esse acento na “nova evangelização” ajudou àrevisão e àreorganização dos programas de formação dos candidatos ao presbiterado? Como éque as diferentes instituições designadas para esta formação (seminários diocesanos, regionais, geridos por ordens religiosas) foram capazes de reler e adequar as suas regras de vida a essa prioridade?
30. De que modo o ministério do diaconado, restaurado recentemente, encontrou neste mandato evangelizador um dos conteúdos da sua identidade?

CONCLUSÃO
«Recebereis o poder do Espírito Santo, que descerásobre vós» (Act. 1, 8)
23. O Pentecostes, fundamento da “nova evangelização”
Com sua vinda entre nós, Jesus Cristo, comunicou-nos a vida divina, que transfigura a face da terra, fazendo novas todas as coisas (cf. Ap. 21, 5). A sua Revelação envolveu-nos não apenas como destinatários da salvação que nos foi dada, mas também como seus arautos e testemunhas. O Espírito do Ressuscitado capacita-nos, assim, a difundir o Evangelho de forma eficaz em todo o mundo. Éa experiência da primeira comunidade cristãque via a Palavra propagar-se através da pregação e do testemunho (cf. Act. 6, 7).
Cronologicamente, a primeira evangelização teve início no dia de Pentecostes quando os apóstolos, reunidos em oração no mesmo lugar, com a Mãe de Cristo, receberam o Espírito Santo. Aquela, que nas palavras do Arcanjo éa “cheia de graça”, encontra-se, assim, no caminho da evangelização apostólica e em todos os caminhos em que os sucessores dos Apóstolos se mobilizaram para anunciar o Evangelho.
Nova Evangelização não significa um “novo Evangelho”, porque «Jesus Cristo éo mesmo ontem, hoje e sempre» (Hb. 13,8). Nova evangelização significa: uma resposta adequada aos sinais dos tempos, às necessidades dos indivíduos e dos povos de hoje, aos novos cenários que desenham a cultura através da qual dizemos a nossa identidade e procuramos o sentido das nossas vidas. Nova evangelização, portanto, significa promover uma cultura profundamente enraizada no Evangelho; significa descobrir o novo homem em nós, graças ao Espírito que nos foi dado por Jesus Cristo e pelo Pai. O processo de preparação para a próxima Assembleia Geral Ordinária do Sínodo dos Bispos, a sua celebração, seja para a Igreja como um novo Cenáculo, em que os sucessores dos Apóstolos, reunidos em oração com a Mãe de Cristo – com Aquela que foi invocada como a Estrela da Nova Evangelização[84] - preparam o terreno para a nova evangelização.
24. A“nova evangelização”, visão para a Igreja de hoje e de amanhã
Nestas páginas falámos muitas vezes de nova evangelização. Vale a pena lembrar, ao concluir, o significado profundo dessa definição, o apelo contido nela. Deixemos esta tarefa ao Papa João Paulo II, que tanto apoiou e difundiu esta terminologia. «Ao longo destes anos, muitas vezes repeti o apelo ànova evangelização; e faço-o agora uma vez mais para incuLc.ar sobretudo que é preciso reacender em nós o zelo das origens, deixando-nos invadir pelo ardor da pregação apostólica que se seguiu ao Pentecostes. Devemos reviver em nós o sentimento ardente de Paulo que o levava a exclamar: «Ai de mim se não evangelizar!» (1 Cor. 9, 16). Esta paixão não deixaráde suscitar na Igreja uma nova missionariedade, que não poderáser delegada a um grupo de «especialistas», mas deverácorresponsabilizar todos os membros do povo de Deus. Quem verdadeiramente encontrou Cristo, não pode guardá-Lo para si; tem de O anunciar. É preciso um novo ímpeto apostólico, vivido como compromisso diário das comunidades e grupos cristãos»[85].
Neste texto muitas vezes se falou também de mudanças e de transformações. Debatemo-nos com cenários que descrevem mudanças de época, que muitas vezes despertam em nós apreensão e medo. Em tal situação, sentimos necessidade de uma visão que nos permita olhar para o futuro com olhos de esperança, sem lágrimas de desespero. Como Igreja, possuímos jáesta visão. É o Reino que vem, que nos foi anunciado por Jesus Cristo e descrito nas suas parábolas. É o Reino que jácomeçou, com a Sua pregação e, sobretudo, com a Sua morte e ressurreição por nós. Todavia, muitas vezes, temos a impressão de não conseguirmos dar substância a esta visão, de não conseguir “fazê-la nossa”, de não conseguirmos torná-la palavra viva para nós e para os nossos contemporâneos, de não a assumir como fundamento das nossas acções pastorais e da nossa vida eclesial.
A este respeito, a partir do Concílio Vaticano II, os Papas ofereceram-nos uma palavra clara para uma pastoral presente e futura: “nova evangelização”, ou seja, nova proclamação da mensagem de Jesus, que traz alegria e nos liberta. Essa palavra de ordem pode ser o fundamento desta visão de que sentimos necessidade: a visão de uma Igreja evangelizadora, a partir da qual iniciámos este texto, é também uma missão que nos éconferida no fim. Todo o trabalho de discernimento, que somos chamados a desempenhar, tem como objectivo que esta visão afunde raízes profundas em nossos corações. Nos corações de cada um de nós, nos corações das nossas Igrejas, para um serviço ao mundo.
25. A alegria de evangelizar
Nova evangelização significa partilhar com o mundo os seus anseios de salvação, e apresentar as razões da nossa fé, comunicando o Logos da esperança (cf. 1 Pd. 3, 15). Os seres humanos precisam da esperança para viver o presente. O conteúdo desta esperança é«aquele Deus de rosto humano que nos amou atéao fim»[86]. Por isso, a Igreja é, por sua natureza, missionária. Não podemos guardar para nós as palavras da vida eterna que nos foram dadas no encontro com Jesus Cristo. Estas são para todos, para cada homem. Cada pessoa do nosso tempo, tendo disso consciência ou não, precisa deste anúncio.
É precisamente a ausência desta consciência que gera deserto e desespero. Entre os obstáculos ànova evangelização está, sem dúvida, a falta de alegria e de esperança que tais situações criam e disseminam entre as pessoas do nosso tempo. Muitas vezes esta falta de alegria e de esperança são tão fortes que chegam a minar o próprio tecido das nossas comunidades cristãs. A nova evangelização propõem-se, nestes contextos, não como um dever, um peso adicional que se deve levar, mas como aquela medicina capaz de restaurar a alegria e vida aquelas realidades prisioneiras dos seus medos.
Enfrentemos por isso a nova evangelização com entusiasmo. Aprendamos a beleza e a reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando parece que o anúncio ésemeado no meio de lágrimas (cf. Sl. 126, 6). «Que isto constitua para nós, como para João Batista, para Pedro e para Paulo, para os outros apóstolos e para uma multidão de admiráveis evangelizadores no decurso da história da Igreja, um impulso interior que ninguém nem nada possam extinguir. Que isto constitua, ainda, a grande alegria das nossas vidas consagradas. E que o mundo do nosso tempo que procura, ora na angústia, ora com esperança, possa receber a Boa Nova dos lábios, não de evangelizadores tristes e descoroçoados, impacientes ou ansiosos, mas sim de ministros do Evangelho cuja vida irradie fervor, pois foram quem recebeu primeiro em si a alegria de Cristo, e são aqueles que aceitaram arriscar a sua própria vida para que o reino seja anunciado e a Igreja seja implantada no meio do mundo»[87].

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