Para Aprofundamento.
APOCALIPSE
AUTOR
Quem escreve se autodenomina João (1,1.4.9; 22,8), e diz estar confinado numa ilha por confessar Jesus Cristo. Sendo João um nome tão freqüente, presta-se a múltiplas identificações. Na Antiguidade se apresentou o apóstolo e evangelista, por sua autoridade apostólica, garantia de canonicidade, e por ser escritor. As dúvidas e negações surgiram quando se começou a desviar a interpretação do milênio (Dionísio de Alexandria, morto em 264, e Eusébio de Cesaréia).
Hoje continuamos a unir esse livro às cartas e ao evangelho num “corpo joanino”; mas são poucos os que atribuem esse livro ao apóstolo João, embora conservem como válido o nome de outro João. O autor se diferencia dos apóstolos (18,20; 21,14).
As coincidências de linguagem com o evangelho de João não são numerosas – a mais notável é o título de Cordeiro para designar Jesus Cristo – e se explicam facilmente se o autor per4tenceu ao círculo de João.
Da leitura, mesmo superficial, deduzimos que o autor é de origem judaica, mediano conhecedor do grego (a tradução emenda os deslizes gramaticais), muito versado no Antigo Testamento, especialmente nos profetas e conhecedor de gêneros literários então em voga.
Do gênero apocalíptico, além do nome, tomou muitos recursos, mas distanciou-se em pontos fundamentais. Enquanto outros autores se escondem atrás de nomes ilustres do passado – Henoc, Abraão, Moisés, Isaías, Baruc -, e transformam o passado em predição, esse autor se apresenta com seu próprio nome e diz contemporâneo dos destinatários, ocupando-se também e declaradamente do presente (1,19).
Não vale objetar que o autor se ampara sob o nome do apóstolo, porque o teria dito.
DESTINATÁRIOS.
Os destinatários imediatos são sete igrejas da província romana da Ásia, às quais sente particularmente ligado por partilhar seus sofrimentos e pela missão “profética” recebida.
Paulo escrevia da prisão, e esse João escreve do desterro ou confinamento. Os destinatários já conhecem a hostilidade; agora se avizinha a grande perseguição. O autor que prevenir e antecipar.
GÊNERO. A primeira palavra do texto é apocalipse, o que equivale à definição do livro para sua classificação, porque o apocalipse é um gênero bem definido. No AT tem só um representante, Daniel, o resto são apócrifos.
O apocalíptico se coloca numa conjuntura de mudança ou sobressalto decisivo.
Olha para o passado e o divide em etapas sucessivas;
Contempla um presente de perigo e angústia crescentes;
E abre a cortina do futuro próximo: o julgamento divino solene e a instauração do reinado do Senhor.
Agora entra a ficção:
O autor se finge um personagem antigo;
O passado reduzido a períodos se apresenta como predição;
O futuro próximo é predição.
Até aqui o trabalho é intelectual; agora começa, com variável êxito, o trabalho da fantasia:
Os períodos são traduzidos em imagens coerentes e articuladas;
O futuro próximo, por ser desconhecido, é descrito com imagens convencionais.
Esse autor aceita a pauta do gênero, a aplica e a modifica. Não resume o passado de Israel nem o da Igreja: supõe que seja conhecido? Seus períodos abrangem o futuro e parecem evoluir em ciclos repetidos ou semelhantes.
O futuro final e definitivo não é iminente, embora seja certo. Muitas coisas vão acontecer até lá.
Além do mais, o autor incorpora à sua obra outros gêneros. Em primeiro lugar, as cartas, muito formalizadas, que têm um antecedente remoto em Jeremias e próximo em Paulo e sua escola. Mais ainda, o escrito inteiro, situado entre as saudações do começo e o final, é como uma gigantesca carta, com remetente, para ser lida – publicamente? – pelos destinatários.
Hinos minúsculos, pouco mais que simples confissões, se encontram já no original hebraico de Daniel; um, que o desenvolve, é acrescentado pelo texto grego. Esse autor dá outro passo: além dos hinos espalhados, compõe e descreve uma grande liturgia celeste, com cenário, cântico e cerimônias.
Embora a primeira palavra seja apocalipse, o autor se sente profeta, investido de missão profética, e chama sua obra de profecia:
Palavra de Deus (1,9)
Espírito profético (19,10)
Palavras proféticas (1,3; 22,18; 22,7-19)
Deve comer o rolo (10,8-11, como Ez 2-3)
Considera-se profeta enquanto enviado e portador de mensagens divinas; sabe também que a apocalíptica é sucessora da profecia. Tudo isso mostra a liberdade criativa do autor.
PROCEDIMENTOSO livro é um paradigma de procedimentos típicos do gênero. Consideremos alguns:
a) Números: explícitos ou implícitos na estrutura. Segundo a velha tradição bíblica, alguns números, além de antiguidade, significam alguma qualidade; assim os usa o autor.
Três é o número da divindade: onze vezes;
Quatro, a totalidade cósmica: dezenove vezes;
Dez, de totalidade: nove vezes;
Doze, das tribos ou povo de Deus: vinte e três vezes;
Sete, número de perfeição: cinqüenta e cinco vezes mais outras implícitas, p.ex.”seduzir” e “paciência” sete vezes no livro;
A metade de sete anos designa uma etapa incompleta (11,3; 12,6; 13,5).
O misterioso número 666 é um caso à parte (13,18, ver abaixo).
b) Cores: simples, sem matizes.
Branco ou Cândido significa vitória (3,4; 6,11; 7,9; 19,14);
O vermelho significa o sangue (6,12);
O preto, epidemia e morte (6,5.12).
c) Imagens: alegorias e símbolos. O repertório é enorme, em grande parte tomado do AT e tratado com liberdade criativa.
Predominam imagens cósmicas: astros, montanha, oceano, ilhas, abismo;
Elemento e meteoros: ar, água e fogo;
Os animais: cavalos, escorpiões, sapos, dragão com chifres, polimorfos (13,2).
E muitas figuras humanas.
Algumas cenas se projetam no céu, como num painel, sugerindo que no céu já aconteceu exemplarmente o que está para acontecer na terra.
Muitas imagens e cenas do livro são de ascendência mítica:
Luta primordial;
Nascimento de um salvador;
Rebelião celeste etc.
É incerto se o autor chegou a elas diretamente ou por mediação de profetas e outros escritos. O certo é que não perderam seu primeiro vigor.
É importante observar a técnica do autor no manejo de suas imagens. Em alguns casos, predominam o esforço e cálculo intelectual, a imagem se torna incoerente ou esmiuçada, descobre-se a trama alegórica. Isso se percebe quando pintores tentaram traduzir as palavras em imagens plásticas.
Muitas outras vezes triunfa a imaginação:
Na riqueza de elementos,
Em visões grandiosas – a terra que abre a boca para beber um rio (12,16)-, em traços certeiros – a fumaça do poço que escurece o sol (9,2).
Por sua riqueza imaginativa, sua estranheza fantástica, sua obscuridade enigmática, esse livro tem fascinado leitores, pensadores e artistas, que nem sempre acertaram com a correta perspectiva para interpretá-lo.
d) O intérprete no texto. Ora, o autor, que propõe seus enigmas em chave de visões, introduz no livro mediadores que mostram e interpretam muitas visões, não todas. Deus o revela a Jesus Cristo, que envia seu anjo/mensageiro, que guia João, e este o escreve e envia às igrejas, através das quais se comunica a mensagem a todos os cristãos para sempre. Apesar de tudo, a interpretação interior ao texto, se foi inteligível para muitos contemporâneos, pode nos desconectar ou parecer incompreensível a nós, seus sucessores; então lançaremos mão de outros instrumentos de interpretação.
e) Um deles, baseado no texto, é o recurso ao AT. O autor cita expressamente sua fontes de inspiração; mas, para quem está familiarizado com o AT, esse apocalipse é quase um arranjo de citações, imitações, alusões, reminiscências; mais de 400 nos caps 4-22.
É uma obra muitas vezes inspirados em modelos alheios e profundamente original. Tudo nos soa como conhecido e nos fascina com sua novidade. Não é colcha de retalhos, não é midraxe; com materiais usados, é a criação poética de um céu novo e uma terra nova (21,1).
f) Construção: É evidente que o autor quer levantar um edifício compacto e bem distribuído; ordem e não labirinto, razão sobre a fantasia. Ao mesmo tempo se vê obrigado a interromper e inserir (9,21), a adiar (20,1-10), a encaixar um ciclo dentro do outro. Como conseqüência, sua obra não é geometria pura.
TEMAPassadas as sete cartas, o tema de conjunto de 4-22 é a luta da Igreja com os poderes hostis. Isso obriga a delimitar claramente os campos, num dualismo simplificado – assim acontece nas guerras.
O chefe da Igreja é Jesus Cristo, tem suas testemunhas, seus seguidores “servos do nosso Deus” (7,3).
Na frente está satã, que tem sua capital em Babilônia, tem seus agentes e um poder limitado.
A vitória de Cristo e dos seus é segura, mas passa pela paixão e morte.
O chefe, o Cordeiro, foi degolado, suas testemunhas são assassinadas (11,1-12), seus servos devem superar a grande tribulação (7,14).
Chegará o julgamento da capital inimiga e sua queda (17-18), a batalha final (19,11-21) e o julgamento universal (20,11-14)
Depois virá o final glorioso e alegre, para o qual tendem o curso e as vicissitudes da história.
O final tem a forma de casamento, do Messias-Cordeiro com a Igreja como no princípio no paraíso (21,22).
A luta, como de costume, é acompanhada de impressionantes perturbações no céu e na terra.
A concepção impõe o dualismo, as antíteses, as oposições simétricas de personagens, figuras e cenas.
As correspondências cruzam obliquamente a obra. É um dualismo dentro do mundo e da história; não o dualismo de instinto e Espírito em Paulo, e menos ainda o dualismo de espírito e matéria nos gnósticos.
CIRCUNSTÂNCIAS E DATA.
O autor quer avisar e animar seus irmãos cristãos para a grave prova que se avizinha.
Já houve perseguições e mártires (2,13; 6,9)
Sobrevém a grande prova dos fiéis (3,10)
Quando o imperador exige adoração e entrega (13,4.16-17; 19,20). A quem se refere em concreto? Os candidatos mais válidos são Nero (54-68) e Domiciano (81-96). Os dados do livro para averiguar, são três não seguros.
Em 13,1 mencionam-se “dez diademas”: se representam imperadores, o décimo é Tito (79-81).
Em 17,10 mencionam-se sete reis: o quinto é Nero, o sexto Galba, o sétimo?
Em 13,18 se lê a famosa transposição numérica do nome: 666 corresponde às consoantes de neron kaisar. Pois bem, Nero não perseguiu os cristãos enquanto tais, mas como vítimas expiatórias do incêndio de Roma.
Domiciano, porém, exigiu honras divinas, “nosso Deus e Senhor”, em todo o seu império, e declarou delito capital a recusa da adoração. A lenda o considerou como um Nero redivivo (13,3). A maioria dos comentaristas se inclina por essa data.
Mas seu sentido não se esgota na referência à conjuntura histórica concreta. Contando que não seja tomado à letra nem como trampolim para especulações, o livro continua transmitindo uma mensagem exemplar a todas as gerações da Igreja.
As hostilidades começadas no paraíso (Gn 3) não acabarão até que se cumpra o final do Apocalipse: “Sim, venho logo. Amém” (22,20).
Fonte: Bíblia do Peregrino
Novo Testamento.
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